domingo, 29 de novembro de 2009

poema de jefferson bessa

nossas águas-palavras (para Rogel Samuel)


palavra úmida
palavra água
gravada em seiva
em leitura água-viva.

palavra-ondina
amistosa fluvial.
é nossa face que vibra
por entre a tela líquida.

letras postadas
móveis nos corpos
na confluência de ondas
escritas, magnéticas.

é tinta de olhos
pela entre-onda
muito atenta e diluída
que ondula o poema.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

ANTOLOGIA




INTIMIDADE





Abgar Renault





As nossas coisas são o nosso convívio verdadeiro.
Uma camisa adere à nossa vida entranhadamente,
como o carinho mais cruel ou como um nome,
e sabe mais de nós que a confissão mais funda.
Um lápis é sempre um sexto dedo,
e é íntimo como a língua este cigarro.

As nossas coisas nos vêem, cheiram, sabem, gostam,
e sofrem-nos pacientemente como somos,
em nossas de carne e osso tristonhas intimidades.

Não são nós, mas, de nós tão saturadas,
são-nos indefinido lado, outras vozes, outros olhos, nossos,
que com a nossa presença crua se comovem,
contemplam e compreendem, e de só se calam.



POEMA DA AMANTE





Adalgisa Nery





Eu te amo
Antes e depois de todos os acontecimentos,
Na profunda imensidade do vazio
E a cada lágrima dos meus pensamentos.
Eu te amo
Em todos os ventos que cantam,
Em todas as sombras que choram,
Na extensão infinita dos tempos
Até a região onde os silêncios moram.
Eu te amo
Em todas as transformações da vida,
Em todos os caminhos do medo,
Na angústia da vontade perdida
E na dor que se veste em segredo.
Eu te amo
Em tudo que está presente,
No olhar dos astros que te alcançam
E em tudo que ainda está ausente.
Eu te amo
Desde a criação das águas,
Desde a idéia do fogo
E antes do primeiro riso e da primeira mágoa.
Eu te amo perdidamente
Desde a grande nebulosa
Até depois que o universo cair sobre mim
Suavemente.
(Mundos oscilantes. José Olympio, 1962, RJ )


Soneto Simples




(Ao amigo e poeta R.S., com apreço)


AFLopes
Meus versos
não sabem
a tâmara
perdida

meus versos
não sentem
os beijos
da rosa

os lábios:
flor dos
desejos

secando
no adeus
de mármore


Manaus, 28 de março de 1961
Travessa Comendador Clementino, 75
Antonio Ferreira Lopes

[Nota do Site: Manuscrito com assinatura do autor] .



AS CARPAS





Apollinaire





Carpas, viveis tão longa vida
nesses viveiros de água fria!
Será que a morte vos olvida,
ó peixes da melancolia?

AR

Música de árvores.
Não a das folhas e ramos.
Mas a outra, para percussão solo.
Madeira, raízes, cascas, nós, galhos.
Tudo que pede machado, corte, pancada.
O que é duro - áspero - bate, e estaca.
O que estala e cresce da terra contra as estrelas.


Armando Freitas Filho, do livro Cabeça de homem, Editora Nova Fronteira, 1991

Para Ana Cristina,
em memória




Armando Freitas Filho


Ainda faltam muitos passos
para atravessar o saguão do mal-entendido.
Como não escorregar na cera
se os sentidos
já não me apóiam
e deslizam para longe
para todas as direções
como as contas de um colar
num chão de gelo
e nem o olhar consegue mais
alcançar, conter e contar
suas pérolas-lágrimas?
Como agarrar ou ser agarrado
nesse deserto triunfante
por alguma coisa que me ame?




Do livro 3X4 Editora Nova Fronteira, 1985


POESIA ARGENTINA
ANTOLOGIA ORGANIZADA
POR
Betty López

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Pedro Benjamín Palacios
(conocido como "Almafuerte")


Piú Avanti!










No te des por vencido, ni aún vencido,
no te sientas esclavo, ni aún esclavo;
trémulo de pavor, piénsate bravo,
y acomete feroz, ya mal herido.

Ten el tesón del clavo enmohecido
que ya viejo y ruin, vuelve a ser clavo,
no la cobarde estupidez del pavo
que amaina su plumaje al primer ruido.

Procede como Dios que nunca llora;
o como Lucifer, que nunca reza;
o como el robledal, cuya grandeza
necesita del agua y no la implora...

¡Que muerda y vocifere vengadora,
ya rodando en el polvo, tu cabeza!




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Los poemas que siguen son de Borges:
Jorge Luis BORGES
EL INSTANTE




¿Dónde estarán los siglos, dónde el sueño
de espadas que los tártaros soñaron,
dónde los fuertes muros que allanaron,
dónde el Árbol de Adán y el otro Leño?

El presente está solo. La memoria
erige el tiempo. Sucesión y engaño
es la rutina del reloj. El año
no es menos vano que la vana historia.

Entre el alba y la noche hay un abismo
de agonías, de luces, de cuidados;
el rostro que se mira en los gastados

espejos de la noche no es el mismo.
El hoy fugaz es tenue y es eterno;
otro Cielo no esperes, ni otro Infierno.

1964


El remordimiento





He cometido el peor de los pecados
que un hombre puede cometer. No he sido
feliz. Que los glaciares del olvido
me arrastren y me pierdan, despiadados.

Mis padres me engendraron para el juego
arriesgado y hermoso de la vida,
para la tierra, el agua, el aire, el fuego.
Los defraudé. No fui feliz. Cumplida

no fue su joven voluntad. Mi mente
se aplicó a las simétricas porfías
del arte, que entreteje naderías.

Me legaron valor. No fui valiente.
No me abandona. Siempre está a mi lado
La sombra de haber sido un desdichado.





Augusto Frederico Schmidt
SONETO XLIX




Morrer, Senhor, de súbito, não quero!
Morrer como quem parte lentamente
Vendo o mundo perder-se pouco a pouco
E com o mundo as imagens da memória.

Morrer sabendo próxima e implacável
A hora de deixar o doce efêmero.
Morrer o olhar voltado para a altura
Para a Face de Deus, ardente e pura.

Morrer como quem vai se despedindo
A fixar as paisagens mais antigas
E os seres mais longínquos, já partidos.

Morrer levando a vida já vivida!
Morrer maduro, e não qual fruto verde
Por violência dos galhos arrancados.

Auta de Souza

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Na Primeira Página
da
“Imitação de Cristo”
Vinde a mim todos os que estais fatigados
e oprimidos, e eu vos consolarei.
IMIT. DE CRISTO L. IV. cap. I
(Macaíba - Março de 1899)





Quando meu pobre coração doente,
Cheio de mágoas, desolado e aflito,
Sinto bater descompassadamente,
Abro este livro então: leio e medito.

Leio e medito nesta voz celeste
Quem vem do Além, qual mensageiro santo,
Trazer um ramo de oliveira agreste
Aos que navegam sobre o mar do pranto.

Meus pobres olhos sempre rasos d’água,
Por um instante deixam de chorar;
E nas asas da Prece a minha mágoa
Vai-se um momento para além do Mar.

E d’entro d’alma, nua de esperança,
Eu penso ouvir como n’um sonho doce
Alguém que fala numa voz tão mansa
Como se o eco de um suspiro fosse:

“Vem a mim se padeces: no meu seio
Corre a fonte serena da Alegria...
Eu sou Aquele que sorrindo veio
Dourar as trevas da Melancolia.

Eu sou um branco e pálido sorriso
Iluminando a tua solidão:
Faze de minha Cruz um Paraíso
E do meu Coração teu coração.

Faze-te humilde, humilde e pequenina,
Como as crianças, como os passarinhos...
Escuta e guarda a minha lei divina,
No sacrário ideal dos meus carinhos.

Não sabes quanto padeci no Horto,
Por ti, por teu amor, filha querida?
Eu sou o Anjo formoso do conforto,
Venho trazer o bálsamo à ferida.

Carrega a tua Cruz e vem comigo
Pela estrada da Dor e do Tormento.
Eu serei teu irmão, teu sol, o amigo
Que em lírios mudará o sofrimento.

Venho trazer a Paz... Longe da terra
A Paz habita... Ao pé do Santuário,
Ó minha filha, a doce paz se encerra
Dentro da Hóstia, dentro do Sacrário.

Felizes os que sofrem e no meu seio
Recolhem suas queixas como preces;
Volta o pesar ao Céu de onde ele veio...
Feliz, ó sim! feliz tu que padeces!”

E a mesma voz escuto, o mesmo canto,
De cada vez que o meu olhar ungido
Cai docemente n’este livro santo,
Lembrança amiga de um irmão querido.

Amo tanto o meu livro, ele é tão puro,
Consola tanto o coração aflito!
Ah! desta vida no caminho escuro
Ele será meu talismã bendito!

E se ele entreabre, a rir, a boca ingênua e pura,
Casta como da rosa o seio imaculado:
“Abrem-se, par em par, - meu coração murmura -
As portas de coral de um palácio encantado!”

Ah! como fico alegre e como canto ao vê-lo!
Foge-me até do seio a sombra do Desgosto.
Inclino-me de leve e beijo-lhe o cabelo
Enquanto o Sol se ajoelha e vem beijar-lhe o rosto...

Ó lírio perfumado! Ó manso cordeirinho
Que guardas a Quimera em teu sorriso em flor...
Vive feliz, ó santo, e que jamais o espinho
Da mágoa te atormente, ó pequenino amor!

Que o meu Verso te leve, açucena bendita,
Nas asas de cristal, as brancas esperanças...
E o afeto sagrado e a ternura infinita
Que minh’alma consagra a todas as crianças!



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BENDITA



Bendita sejas, minha mãe, bendito
Seja o teu seio, imaculado e santo,
Onde derrama as gotas de seu pranto
Meu dolorido coração aflito.

Ó minha mãe, ó anjo sacrossanto,
Bendito seja o teu amor, bendito!
Ouve do Céu o amargurado grito
Cheio da dor de quem soluça tanto.

E deixa que repouse em teus joelhos
A minha fronte, ouvindo os teus conselhos
Longe do mundo, ó sempiterna dita!

Envia lá do céu no teu sorriso
A morte que levou-te ao Paraíso...
Bendita sejas, minha mãe, bendita!







À ALMA DE MINHA MÃE




Partiu-se o fio branco e delicado
Dos sonhos de minh'alma desditosa...
E as contas do rosário assim quebrado
Caíram como folhas de uma rosa.

Debalde eu as procuro lacrimosa,
Estas doces relíquias do Passado,
Para guardá-las na urna perfumosa,
Do meu seio no cofre imaculado.

Aí! se eu ao menos uma só pudesse
D'estas contas achar que me fizesse
Lembrar um mundo de alegrias doidas...

Feliz seria... Mas minh'alma atenta
Em vão procura uma continha benta:
Quando partiste m'as levaste todas!








A MINHA AVÓ



Minh'alma vai cantar, alma sagrada!
Raio de sol dos meus primeiros dias...
Gota de luz nas regiões sombrias
De minha vida triste e amargurada.

Minh'alma vai cantar, velhinha amada!
Rio onde correm minhas alegrias...
Anjo bendito que me refugias
Nas tuas asas contra a sina irada!

Minh'alma vai cantar... Transforma o seio
N'um cofre santo de carícias cheio,
Para este livro todo o meu tesouro...

Eu quero vê-lo, em desejada calma,
No rico santuário de tu'alma...
— Hóstia guardada n'um cibório de ouro! —




.

REGINA MARTYRUM



Lírio do Céu, sagrada criatura,
Mãe das crianças e dos pecadores,
Alma divina como a luz e as flores
Das virgens castas a mais casta e pura;

Do Azul imenso, d'essa imensa altura
Para onde voam nossas grandes dores,
Desce os teus olhos cheios de fulgores
Sobre os meus olhos cheios de amargura!

Na dor sem termo pela negra estrada
Vou caminhando a sós, desatinada,
— Ai! pobre cega sem amparo ou guia! —

Sê tu a mão que me conduza ao porto...
Ó doce mãe da luz e do conforto,
Ilumina o terror d'esta agonia!








A praia de Dover

Matthew Arnold
O Mar da Fé
Também existiu, no passado, cheio, e em volta da praia do mundo
Estendia-se como as dobras de uma faixa desdobrada.
Agora, porém, somente lhe escuto
O bramido melancólico, longo, fugidio,
Que se aparta para as lufadas
Do vento noturno, escorrendo por vastas e horrendas costas
E pelos areais desnudos do mundo.”
....................................................
Ah!, amor, sejamos fiéis
Um ao outro.
Pois o mundo, que parece
Estender-se à nossa frente como uma terra de sonhos,
Tão diversas, tão formosas, tão novas,
Na verdade não tem nem alegria, nem amor, nem luz,
Nem certeza, nem paz, nem lenitivo para a dor;
E estamos aqui como numa planície penumbrosa,
Varrida de confusos alarmas de combate e de fuga,
Na qual exércitos ignorantes à noite travam batalha.”
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Dover Beach
by Matthew Arnold

The sea is calm to-night.
The tide is full, the moon lies fair
Upon the straits; -on the French coast the light
Gleams and is gone; the cliffs of England stand,
Glimmering and vast, out in the tranquil bay.
Come to the window, sweet is the night air!
Only, from the long line of spray
Where the sea meets the moon-blanch'd land,
Listen! you hear the grating roar
Of pebbles which the waves draw back, and fling,
At their return, up the high strand,
Begin, and cease, and then again begin,
With tremulous cadence slow, and bring
The eternal note of sadness in.
Sophocles long ago
Heard it on the Aegean, and it brought
Into his mind the turbid ebb and flow
Of human misery; we
Find also in the sound a thought,
Hearing it by this distant northern sea.

The Sea of Faith
Was once, too, at the full, and round earth's shore
Lay like the folds of a bright girdle furl'd.
But now I only hear
Its melancholy, long, withdrawing roar,
Retreating, to the breath
Of the night-wind, down the vast edges drear
And naked shingles of the world.

Ah, love, let us be true
To one another! for the world, which seems
To lie before us like a land of dreams,
So various, so beautiful, so new,
Hath really neither joy, nor love, nor light,

Nor certitude, nor peace, nor help for pain;
And we are here as on a darkling plain
Swept with confused alarms of struggle and flight,
Where ignorant armies clash by night.

[1867]

TENREIRO ARANHA
(1769-1811).
Soneto

À parda Maria Bárbara, mulher de um soldado,
cruelmente assassinada, porque preferiu a morte
à mancha de adúltera.




Se acaso aqui topares, caminhante,
Meu frio corpo já cadáver feito,
Leva piedoso com sentido aspeito
Esta nova ao esposo aflito, errante ...
Diz-lhe como de ferro penetrante
Me viste por fiel cravado o peito,
Lacerado, insepulto, e já sujeito
O tronco feio ao corvo altivolante:
Que dum monstro inumano, lhe declara,
A mão cruel me trata desta sorte;
Porém que alívio busque a dor amara
Lembrando-se que teve uma consorte,
Que, por honrada fé que lhe jurara,
À mancha conjugal prefere a morte.

domingo, 27 de setembro de 2009

COMENTÁRIOS PRECIOSOS








Querido Rogel
Realmente, a maioria dos amigos de outrora, mudaram muito, e às vezer, radicalmente
Mas existem aquelas amizades que ainda resistem a todas as mudanças
A idade avançada, também traz sabedoria.
A sabedoria de compreender as pessoas e as coisas como elas são
Diferente dos jovens que estão querendo sempre mudar tudo. Sem nem ao menos perceber o que realmente está acontecendo à sua volta. Ou com eles
E com isso, eles perdem um tempo precioso
A mudança faz parte da vida. É ela que traz a renovação
Quando compreendemos isso com sabedoria, como dizem os mestres, podemos aproveitar a vida a cada momento, com o que ela nos dá
Gostei muito de ler o seu blog
Abraço
Goretti/Daien



Estimado amigo Rogel Samuel:Li, encantado, o seu comentário acerca da minha modesta tradução deum soneto em inglês de Fernando Pessoa.Como analista arguto que é da Literatura, V. tem o dom de sondar o quepaira acima da mera análise literária em si. Vai muito além e o fazpoeticamente, desentranhando da profundidade dos seres e das obras oque não suspeitávamos como simples mortais. À sua crítica chamariade crítica poética, pois ela se se realiza no domínio daliteriedade, sendo que esta última acoplada à criaçãocrítico-poética.Suas crônicas, seus textos, estão atravessados por essa finasensibilidade, melhor dizendo, suavidade, do domínio do poético, dacrítica como criação, que faz de um texto um texto outro com umsopro do lirismo brotado na naturalidade , na espontaneidade de suaescrita.Portanto, lisonjeia-me saber que o trabalhoque faço no domínioliterario tem ressonância positiva de um especialista..Estou dando continidade às traduções de poemas pessoanos, dentro domeu tempo possível.Aproveito para informá-lo de que eu tomei a liberdade de incluir oseu Novo manual de teoria literária como indicação biblliográfica nomeu pequeno volume a ser lançadobrevemente pela editora Quártica,Breve introdução ao curso de Letras: uma orientação.Cumpprimentando efusivamente, queira dispor do amigo e admirador, Cunha e Silva Filho.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Carpintaria poética

Carpintaria poética

Adrino Aragão


Luiz Bacellar é, dentre os expressivos poetas amazonenses, o mais aclamado pelas elites, estudantes e populares de Manaus. Mas, ao contrário do que possa parecer, sua poesia não é tão simples, de fácil consumo. Artesão da palavra, carpinteiro do verso, Bacellar constrói cada poema com rigor formal e forte densidade temática, numa linguagem refinada, primorosa.
Como explicar o sucesso de um poeta sério como Luiz Bacellar que não faz poesia em função do mercado? Mistérios da poesia, da arte? Talvez. Quem sabe uma resposta ao mercado do livro que aí está: a boa literatura brasileira existe; há, sim, leitores para a poesia, o conto, o romance, a novela de nossos escritores.
A verdade é que são 50 anos de trabalho poético de Luiz Bacellar. Frauta de barro, seu livro de estréia, na correta afirmação do poeta e crítico literário professor Tenório Telles, “é um marco na evolução da literatura que se faz no Amazonas”.
De formação clássica e espírito de renovação estética modernista, Bacellar pôde construir, com admirável liberdade (já a partir desse livro) algo de novo na dicção lírica de sua poesia. E que haveria de se ampliar em livros posteriores. Canta o poeta em “Variações sobre um prólogo”: “Em menino achei um dia/ bem no fundo de um surrão/ um frio tubo de argila/ e fui feliz desde então; // rude e doce melodia/ quando me pus a soprá-lo/ jorrou límpida e tranqüila/ como água por um gargalo. // E mesmo que toda a gente/ fique rindo, duvidando/ destas estórias que narro, // não me importo: vou contente/ toscamente improvisando/ na minha frauta de barro.// É o tema recomeçado/ na minha vária canção.”
Enquanto muitos destroem o passado com a ânsia de criar o novo, o moderno, o poeta Luiz Bacellar mantém forte diálogo com a tradição, elege a memória como tema em muitos de seus textos poéticos. Sem saudosismos. O passado tem o sentido de memória, de registro - seja de denúncia ou crítica (quase sempre bem-humorada) contra o silêncio do descaso, do abandono, da “insanidade de um presente” que flagela e aniquila as fontes de nossa história. Como nos versos de “Balada da rua da Conceição”: “Vão derrubar vinte casas/ na rua da Conceição./ Vão derrubar as mangueiras/ e as fachadas de azulejo/ da rua da Conceição./ (Onde irão morar os ratos/ de ventre gordo e pelado?/ e a saparia canora da rua da Conceição?” O poeta, por vezes, estende o olhar sobre gentes humildes, os esquecidos, como em “Lavadeiras”, poema do mais fino lirismo, comparável a de um Jorge de Lima: “A roupa nos varais panda flutuando,/ com seus laivos de anil coando a brisa,/ até parece ávida nau cortando/ o mar azul que a leve espuma frisa.// O vento timoneiro vai guiando/ e o sol nas bolhas de sabão se irisa/ enquanto as lavadeiras vão cantando/ a torcer e a bater na tábua lisa”. Aliás, como um Midas, Bacellar consegue transformar em filigranas de poesia as coisas mais comuns, por exemplo, um simples isqueiro, vejam: “Se, na pedra, acordo estrelas/ com um golpe do polegar,/ a chama, só para vê-las,/ já se levanta a bailar”.

Frauta de barro tem ainda outro mérito. Deu ao poeta Luiz Bacellar o prêmio Olavo Bilac, da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro (1959). Na comissão julgadora do concurso estavam dois dos maiores poetas brasileiros, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Pode haver reconhecimento maior que este, para qualquer escritor?

Mas Luiz Bacellar não é poeta de um livro só. Outros foram publicados. Cada um deles revela, de modo surpreendente, a performance desse poeta que tece poesia de altíssima qualidade.

Sol de feira é outro grande momento literário de Luiz Bacellar. Para início, o tema é originalíssimo, senão inusitado, na poética brasileira. Professor Ernesto Renan Freitas Pinto considerou o livro um “pomar real” que “nos ensina a admirar e saborear a rica coleção dos frutos da terra”. Vejo-o como telas do mais belo impressionismo. Mas, às vezes, parece escorrer, do rondel de cada fruta, um sumo mágico de canções: é quando me sinto arrebatado pelos acordes de uma sinfonia de Bach ou Handel. Por que não de Villa-Lobos? Como nos versos de “rondel da pitanga”: “Gracioso arbusto/ de folhas breves/ todo adornado/ de frutos leves/ como as caboclas/ do meu torrão/ e as notas loucas/ do meu violão// rubras miçangas/ rubis talhados/ de viva cor/ sois vós pitangas/ cristalizados/ beijos de amor”.

Há mais, muito mais. Por exemplo, um belíssimo poema musical longo, dividido em 33 partes – ou, como declara o poeta, sonata em si bemol menor para flauta, fagote, clarinete e oboé. Inclusive uma boa safra de haicais, em que o poeta reafirma o seu talento criativo. “Rajadas de chuva/ sobre o teto de alumínio:/ sons da lua cheia.” “Como um prisioneiro/ a lua me espia pelas/ grades do banheiro.” “Água resmungona.../ No tanque limoso/ o pulo da rã.” (Bashô)

A editora Valer publicou (1998) as obras de Luiz Bacellar, reunidas em um só volume, com o título de Quarteto.

Vale a pena ler Luiz Bacellar. E conhecer, através de seus poemas, a trajetória luminosa do poeta amazonense, que atingiu o estado de excelência na poesia brasileira. Mais que isto. Ultrapassou a barreira do preestabelecido: ao lidar com elementos tradicionais, aprofunda o exato conceito de modernidade.


segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Vitrais das noites e lendas visitam Brasília


Vitrais das noites e lendas visitam Brasília



Adrino Aragão




Meu verso é semente
lançada entre ruínas
e olhares de fábula.
(Jorge Tufic)


Houve uma noite na I Bienal Internacional de Poesia, realizada na Capital Federal (2008), em que, na voz do poeta Jorge Tufic, os vitrais das noites e as lendas cobriram de magia e encantamento o Auditório do Museu Nacional. Não falo, ou melhor, não escrevo de caso ouvido ou de caso contado. Escrevo o que vi e ouvi diante de meus olhos, não apenas diante de meus olhos acostumados a eventos culturais semelhantes em outros grandes centros do País, mas sim diante de um público seleto, estudantes, jornalistas, professores, escritores, críticos, leitores, gente que ama a Poesia e as Artes de modo geral. O depoimento do poeta Tufic dá a dimensão de sua participação e de seus companheiros palestrantes na Bienal: “O convite para participar do evento de tamanha magnitude me foi feito pelo grande Antonio Miranda. O honroso espaço, reservado a cada poeta, deu-me a oportunidade de ler alguns poemas de minha autoria, não deixando de fora aqueles que estão no Quando as noites voavam, trilogia amazônica que, já acrescida de uma quarta parte, encerra, talvez para sempre, este ciclo poético-lendário a que tanto me dediquei ao longo de 30 anos em Manaus”. (...) E, num gesto de modéstia que lhe é próprio, confessa: “Ponto alto, contudo, de meus contatos em Brasília foi a reunião de amigos que tivemos numa das dependências do Hotel Nacional, quando fui “intimado” a dar meu depoimento sobre as origens do Clube da Madrugada, assunto este que me parece uma continuação dessa mesma atmosfera que permeia as estórias dos mais antigos habitantes da Hiléia”.


Jorge Tufic, como um dos fundadores mais produtivos do Clube da Madrugada, dá o seguinte depoimento para os leitores de “Entre-texto”:


“Para se ter uma idéia do Clube da Madrugada, basta lembrar que ele foi criado (1954) numa praça, ao ar livre, tomando a lição dos pássaros, dos ventos e da vida em redor. Essa lição de liberdade arejava os sentidos e tornava mais ampla e profunda a convivência do grupo, integrado por sonhadores, visionários, poetas, estudantes, ficcionistas, músicos, artistas plásticos, antropólogos, filósofos, economistas, políticos, comerciantes etc. À distância, fechados em seus gabinetes, dormitavam os conservadores. Mas havia as exceções, como André Araújo, Geraldo Pinheiro, padre Nonato, Sebastião Norões e outros, que nos davam seu apoio e nos acolhiam em seu meio. Assim foi que as primeiras reuniões fora dos cercados da praça seriam realizadas nos bares e cafés onde esses mestres costumavam se encontrar; e a seguir, em lugares ainda mais fechados, como na casa do Desembargador André Vidal de Araújo e na Escola de Serviço Social, dirigida e mantida por este, em cujo auditório Francisco Batista pronunciou conferência sob o título “Conceituação do Modernismo no Amazonas”. (...) “Até que chegássemos aos anos setenta, o CM já tinha ocupado e mantido, por longos períodos, páginas inteiras nos jornais: A Crítica, Jornal do Comércio, O Jornal, além de revistas e periódicos que estampavam a produção literária da equipe e dos colaboradores, entre os quais podemos mencionar nomes famosos como Assis Brasil, Nauro Machado, José Alcides Pinto, Nunes Pereira, Pessoa de Moraes, Jorge Amado, Max Martins, Benedito Nunes e outros. Por ocasião do lançamento da Poesia de Muro, a adesão dos Estados do Nordeste foi maciça. Outro feito histórico: o trabalho para se construir e lançar os monumentos em homenagem a Gonçalves Dias e a Bruno de Menezes, existentes na Praça da Polícia, local da ‘sede’ do Clube. É impossível detalhar, contudo, todos os passos do movimento madrugada”.


De fato, a história do Clube da Madrugada é escrita por grandes debates, eventos, e várias são as fases do movimento. Sempre marcado em ferro e fogo pelo trabalho de cada “afoito madrugadense”, expressão usada por Guimarães Rosa no hall do Hotel Amazonas, quando esteve em Manaus. “Dá pena” – como diz Jorge Tufic - “que esses debates não tenham sido gravados – mas onde o gravador, naqueles tempos? Basta dizer que os livros, que hoje se lêem em tradução portuguesa, eram lidos no próprio original inglês, alemão ou francês. As únicas traduções eram feitas em espanhol”.





Na trajetória dos mais de 50 anos de poesia, Jorge Tufic viajou por quase todas as formas poéticas: soneto, verso livre, poema concreto, práxis, poesia de muro e outros experimentos de renovação da literatura brasileira. Nunca, no entanto, por modismos; mas por compreender que a arte da escrita é, antes de tudo, exercício de alquimia e encantamento. Gênios da pintura, como Van Gogh, Cézanne, Monet e outros gigantes, revelaram, ao longo de suas vidas, que é na mistura das tintas que os grandes artistas encontram a química das cores definitivas com que pintam suas telas universais.

Tudo isso para dizer: só alguém como Jorge Tufic, poeta do Mundo (acreano de nascimento, amazonense por escolha e filho de libaneses), poderia tecer, com os fios da sabedoria de um velho pajé espiritual, e com o encanto narrativo de Sherazade, Quando as noites voavam, livro de tamanha força poética e incomparável riqueza de conteúdo. Afinal, ensinam os mestres, os mitos não são apenas estórias universais; os mitos “moldam e espelham nossas vidas – exploram nossos desejos, nossos medos, nossas esperanças”.

Nesse contexto, diríamos que, pelos rios sagrados dos mitos e lendas, e sob a ritualística de cantos e danças, evocados pelo poeta Tufic correm filigranas de pura poesia de inspiração divina, como acontece sempre que poesia e mito se unem. Leiam esses versos: “Contam que foi assim./ As águas baixaram tanto/ que os peixes subiram para a terra,/ tomaram forma de gente.// Uma Cobra do tamanho do arco-íris/ espalhou essa gente pelas margens do rio./ Antes da pupunha e do arumã,/ antes do Dia e da Noite...” (pág.21), “Neste princípio de noite/ meus dedos têm furos de flauta” (pág.77), “Nestas paragens da Noite,/ a lua se despe no fundo do lago” (pág.80), “Desvair a Cobra-Grande/ até o visgo da lenda” (pág.79).


Na verdade, nada escapa ao sopro mágico de flauta do poeta Jorge Tufic. Nem mesmo, e principalmente, as ações criminosas e impunes do homem contra a floresta, rios, peixes, pássaros, animais, enfim contra a Natureza. É quando, então, o poeta, como um Deus enfurecido, impõe sua flauta incandescente, e derrama-se um canto melancólico e assustador, como no belíssimo e comovente poema “Que será de ti, Amazônia?”, do qual extraímos os versos: (...) “Que será de ti, Amazônia,/ enquanto não forem avaliadas tuas perdas/ e teu desgaste/ em quatrocentos anos de falsa/ prosperidade para o homem;/ e de lenta,/ lentíssima agonia/ para os sonhos e as riquezas/ que te habitam?” (pág.136) (...) “Que será de ti, Amazônia,/ quando tuas lendas não tiverem mais/ onde pousar; e a doce flauta/ do uirapuru/ quebrar-se numa profunda elegia/ sobre os rios que mínguam/ e os areais que avançam?’ (pág.137).


Quando as noites voavam, de Jorge Tufic, é livro para ficar, ao lado de Cobra Norato, de Raul Bopp, como obra-prima da literatura brasileira. E, naturalmente, para ser lido e refletido, agora. Antes que os rios morram de sede, os pássaros silenciem, a floresta tombe em definitivo. E o homem, sem Deus, sem esperança no coração, desapareça da face da terra – como um verme engolido pela serpente insaciável da ganância e do egoísmo em acumular riquezas.

domingo, 30 de agosto de 2009

Poesia como diálogo e criação


Poesia como diálogo e criação



Adrino Aragão



A aventura da parelha humana

Se da pela ventura da palavra.

(Aníbal Beça)





Aníbal Beça é um senhor poeta. Já a partir de Filhos da várzea (1984) - publicado 18 anos depois de Convite frugal, livro de estréia – seus poemas chamavam atenção de poetas consagrados, Carlos Drummond de Andrade e Ledo Ivo, e de críticos de nomeada, Marcus Frederico Krüger e Antônio Paulo Graça. Mas foi, seguramente, com Suíte para os habitantes da noite (Prêmio Nestlé de Literatura Brasileira, 1995) que o poeta amazonense alcançou, definitivo, dimensão nacional. Marcus Accioly, membro do júri, considerou o livro “um épico moderno que, contendo o lírico, alcança a essência do dramático”. E vai além. “Dentro da idéia do Mundo-Labirinto, de Friedrich Dürrenmatt, Aníbal Beça é Dédalo (construtor do Labirinto de palavras) e é Teseu (não perde o fio de Ariadne) desafiando o Minotauro do poema”.



A obra poética de Aníbal Beça o insere na primeira linha de autores modernistas da poesia brasileira contemporânea. Mas, ao contrário dos mais radicais, o poeta se articula com as duas vertentes de modernistas: a de escritores com a linguagem mais lírica, subjetiva (por exemplo, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira), a daqueles que possuem uma linguagem mais objetiva, experimental, formalista (João Cabral de Melo Neto) e a poesia concreta.



Poesia não é apenas um fato estético. Poesia é também um fato ético. Constrói-se para o nada e o nada é tudo. Poesia não tem utilidade prática, imediata, certo. Mas deve servir para alguma coisa, ou servir para alguém, mesmo que esse alguém seja o próprio poeta. Senão, por que escrevê-la? Por que publicá-la?



Nesse contexto, e hábil no manejo do verso, Aníbal é lírico, sem ser banal, sentimental, e moderno sem radicalismos. “Sem embargo/ trago sempre no alforje/ um fardo de estrelas:/ sei-me estivador/ desse cais agônico:/ atarefado Sísifo” (Poema cíclico).



A propalada liberdade literária - que se instaura no trabalho persistente sobre a linguagem. E que lhe permite, como poeta e amazônida, estender o primeiro olhar para “a continuidade perdida/ das vilas perdidas na floresta”. Ainda nesse mesmo reencontro com as raízes, o seu canto, entre o místico e o mítico, se transforma em vozes de celebração da vida, mais um curumim na várzea. Já o espera “um cocho de itaúba será o berço” – “para que o novo enviado aprenda,/ desde muito cedo, a convivência/ agridoce do olor da maniva”. Como tantos outros que o antecederam, “Ele virá da luz e das águas,/ das verdolengas águas de várzea./ Como a gárrula dos sábios prevê,/ crescerá gaio à fímbria de igapós.”(Verde que se faz verde premícia). Não há ouro, incenso ou mirra, nem reis vindo do Oriente, em “dóceis camelos”; mas em “Presságio de boas novas na várzea,/ oferendas dos pajés das terras:// do cheiro-verde, o viço fraterno;/ dos peixes, a esperança de vida;/ dos beijus, a noção do repartir”.



Aníbal Beça não é poeta de uma ilha só. Não aborda apenas o universo regional. O tema maior da composição poética é o homem, as angústias existenciais. Sua poesia busca um sentido para a vida, no diálogo poético com o homem. Onde quer que o homem esteja. Mas, como acontece com a boa poesia, nem sempre o poema se entrega fácil. Impõe várias leituras. Até que se possa romper-lhe a “pele”, para atingir o âmago do poema, a essência do poema. Vejamos, por exemplo, esses versos do poema “Primeira lição das facas”, dedicado a João Cabral de Melo Neto: “Essa faca não resgata/ nem de si a própria entranha,/ como cortante piranha/ que a si mesma se abocanha”. Ou quando o poeta nos diz sobre “a idade clara da chuva” (Líquida cantaria). É também o caso do poema “Noturno”: sob aparência de desorganizados na página, os versos (poesia concreta) se arrumam com a leitura de outro olhar e explodem na magia da leitura: “O cão mais que pretérito/ abandonado/ selenita/ uiva/ metade de sua origem/ al/ fa/ lu/ nar”.



Os versos, até aqui reproduzidos, são de Filhos da várzea (Editora Valer, 2ª edição, 2002). Trata-se de livro múltiplo. Um livro só que reúne vários outros. Ou nos dá essa impressão pela variedade de formas estabelecidas. Do poema livre ou de rimas brancas ao haicai, das redondilhas a poesia concreta.



Falei sobre Filhos da várzea porque o livro é como um rio largo e profundo, de águas revoltas a caminho do mar que conduzirá sempre o poeta a pontos raramente atingidos nas terras da Poesia. Mas Aníbal Beça tem outros livros publicados de poesia. De Itinerário da noite desmedida à mínima fratura (1987), com forte conteúdo subjetivo e riqueza de linguagem e metáforas, transcrevo fragmentos de alguns poemas: “Mínima fratura/ são estes curtos poemas:/ meu sol de falanges.// O rio é uma cabra/ berrante e bela balindo/ bemóis que são ondas” (Ofertório). “Manhãs se precipitam como búfalos/ em manadas lustrosas – sóis de ébano:/ E essas negras narinas tão agrestes/ expulsam ventos ázimos e flores” (Coplas das manhãs).”E desta herança ibérica que assoma/ esta minha ascendência lusitana/ afloram as tristezas desses traços/ nos mangues mais secretos do meu íntimo.// E fico a navegar nas calmarias/ sem a presença brava desses ventos/ sabendo que essa trégua dura pouco/ e o meu sobreviver é um mar revolto” (Coplas do mar).



O plantio dos sonhos na “várzea” da criação foi árduo mas eficiente. Os frutos da colheita são os poemas primorosos, de altíssima qualidade. O segredo: o talento e a paixão de Aníbal Beça pela palavra. A poesia em essência.