segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Vitrais das noites e lendas visitam Brasília


Vitrais das noites e lendas visitam Brasília



Adrino Aragão




Meu verso é semente
lançada entre ruínas
e olhares de fábula.
(Jorge Tufic)


Houve uma noite na I Bienal Internacional de Poesia, realizada na Capital Federal (2008), em que, na voz do poeta Jorge Tufic, os vitrais das noites e as lendas cobriram de magia e encantamento o Auditório do Museu Nacional. Não falo, ou melhor, não escrevo de caso ouvido ou de caso contado. Escrevo o que vi e ouvi diante de meus olhos, não apenas diante de meus olhos acostumados a eventos culturais semelhantes em outros grandes centros do País, mas sim diante de um público seleto, estudantes, jornalistas, professores, escritores, críticos, leitores, gente que ama a Poesia e as Artes de modo geral. O depoimento do poeta Tufic dá a dimensão de sua participação e de seus companheiros palestrantes na Bienal: “O convite para participar do evento de tamanha magnitude me foi feito pelo grande Antonio Miranda. O honroso espaço, reservado a cada poeta, deu-me a oportunidade de ler alguns poemas de minha autoria, não deixando de fora aqueles que estão no Quando as noites voavam, trilogia amazônica que, já acrescida de uma quarta parte, encerra, talvez para sempre, este ciclo poético-lendário a que tanto me dediquei ao longo de 30 anos em Manaus”. (...) E, num gesto de modéstia que lhe é próprio, confessa: “Ponto alto, contudo, de meus contatos em Brasília foi a reunião de amigos que tivemos numa das dependências do Hotel Nacional, quando fui “intimado” a dar meu depoimento sobre as origens do Clube da Madrugada, assunto este que me parece uma continuação dessa mesma atmosfera que permeia as estórias dos mais antigos habitantes da Hiléia”.


Jorge Tufic, como um dos fundadores mais produtivos do Clube da Madrugada, dá o seguinte depoimento para os leitores de “Entre-texto”:


“Para se ter uma idéia do Clube da Madrugada, basta lembrar que ele foi criado (1954) numa praça, ao ar livre, tomando a lição dos pássaros, dos ventos e da vida em redor. Essa lição de liberdade arejava os sentidos e tornava mais ampla e profunda a convivência do grupo, integrado por sonhadores, visionários, poetas, estudantes, ficcionistas, músicos, artistas plásticos, antropólogos, filósofos, economistas, políticos, comerciantes etc. À distância, fechados em seus gabinetes, dormitavam os conservadores. Mas havia as exceções, como André Araújo, Geraldo Pinheiro, padre Nonato, Sebastião Norões e outros, que nos davam seu apoio e nos acolhiam em seu meio. Assim foi que as primeiras reuniões fora dos cercados da praça seriam realizadas nos bares e cafés onde esses mestres costumavam se encontrar; e a seguir, em lugares ainda mais fechados, como na casa do Desembargador André Vidal de Araújo e na Escola de Serviço Social, dirigida e mantida por este, em cujo auditório Francisco Batista pronunciou conferência sob o título “Conceituação do Modernismo no Amazonas”. (...) “Até que chegássemos aos anos setenta, o CM já tinha ocupado e mantido, por longos períodos, páginas inteiras nos jornais: A Crítica, Jornal do Comércio, O Jornal, além de revistas e periódicos que estampavam a produção literária da equipe e dos colaboradores, entre os quais podemos mencionar nomes famosos como Assis Brasil, Nauro Machado, José Alcides Pinto, Nunes Pereira, Pessoa de Moraes, Jorge Amado, Max Martins, Benedito Nunes e outros. Por ocasião do lançamento da Poesia de Muro, a adesão dos Estados do Nordeste foi maciça. Outro feito histórico: o trabalho para se construir e lançar os monumentos em homenagem a Gonçalves Dias e a Bruno de Menezes, existentes na Praça da Polícia, local da ‘sede’ do Clube. É impossível detalhar, contudo, todos os passos do movimento madrugada”.


De fato, a história do Clube da Madrugada é escrita por grandes debates, eventos, e várias são as fases do movimento. Sempre marcado em ferro e fogo pelo trabalho de cada “afoito madrugadense”, expressão usada por Guimarães Rosa no hall do Hotel Amazonas, quando esteve em Manaus. “Dá pena” – como diz Jorge Tufic - “que esses debates não tenham sido gravados – mas onde o gravador, naqueles tempos? Basta dizer que os livros, que hoje se lêem em tradução portuguesa, eram lidos no próprio original inglês, alemão ou francês. As únicas traduções eram feitas em espanhol”.





Na trajetória dos mais de 50 anos de poesia, Jorge Tufic viajou por quase todas as formas poéticas: soneto, verso livre, poema concreto, práxis, poesia de muro e outros experimentos de renovação da literatura brasileira. Nunca, no entanto, por modismos; mas por compreender que a arte da escrita é, antes de tudo, exercício de alquimia e encantamento. Gênios da pintura, como Van Gogh, Cézanne, Monet e outros gigantes, revelaram, ao longo de suas vidas, que é na mistura das tintas que os grandes artistas encontram a química das cores definitivas com que pintam suas telas universais.

Tudo isso para dizer: só alguém como Jorge Tufic, poeta do Mundo (acreano de nascimento, amazonense por escolha e filho de libaneses), poderia tecer, com os fios da sabedoria de um velho pajé espiritual, e com o encanto narrativo de Sherazade, Quando as noites voavam, livro de tamanha força poética e incomparável riqueza de conteúdo. Afinal, ensinam os mestres, os mitos não são apenas estórias universais; os mitos “moldam e espelham nossas vidas – exploram nossos desejos, nossos medos, nossas esperanças”.

Nesse contexto, diríamos que, pelos rios sagrados dos mitos e lendas, e sob a ritualística de cantos e danças, evocados pelo poeta Tufic correm filigranas de pura poesia de inspiração divina, como acontece sempre que poesia e mito se unem. Leiam esses versos: “Contam que foi assim./ As águas baixaram tanto/ que os peixes subiram para a terra,/ tomaram forma de gente.// Uma Cobra do tamanho do arco-íris/ espalhou essa gente pelas margens do rio./ Antes da pupunha e do arumã,/ antes do Dia e da Noite...” (pág.21), “Neste princípio de noite/ meus dedos têm furos de flauta” (pág.77), “Nestas paragens da Noite,/ a lua se despe no fundo do lago” (pág.80), “Desvair a Cobra-Grande/ até o visgo da lenda” (pág.79).


Na verdade, nada escapa ao sopro mágico de flauta do poeta Jorge Tufic. Nem mesmo, e principalmente, as ações criminosas e impunes do homem contra a floresta, rios, peixes, pássaros, animais, enfim contra a Natureza. É quando, então, o poeta, como um Deus enfurecido, impõe sua flauta incandescente, e derrama-se um canto melancólico e assustador, como no belíssimo e comovente poema “Que será de ti, Amazônia?”, do qual extraímos os versos: (...) “Que será de ti, Amazônia,/ enquanto não forem avaliadas tuas perdas/ e teu desgaste/ em quatrocentos anos de falsa/ prosperidade para o homem;/ e de lenta,/ lentíssima agonia/ para os sonhos e as riquezas/ que te habitam?” (pág.136) (...) “Que será de ti, Amazônia,/ quando tuas lendas não tiverem mais/ onde pousar; e a doce flauta/ do uirapuru/ quebrar-se numa profunda elegia/ sobre os rios que mínguam/ e os areais que avançam?’ (pág.137).


Quando as noites voavam, de Jorge Tufic, é livro para ficar, ao lado de Cobra Norato, de Raul Bopp, como obra-prima da literatura brasileira. E, naturalmente, para ser lido e refletido, agora. Antes que os rios morram de sede, os pássaros silenciem, a floresta tombe em definitivo. E o homem, sem Deus, sem esperança no coração, desapareça da face da terra – como um verme engolido pela serpente insaciável da ganância e do egoísmo em acumular riquezas.

domingo, 30 de agosto de 2009

Poesia como diálogo e criação


Poesia como diálogo e criação



Adrino Aragão



A aventura da parelha humana

Se da pela ventura da palavra.

(Aníbal Beça)





Aníbal Beça é um senhor poeta. Já a partir de Filhos da várzea (1984) - publicado 18 anos depois de Convite frugal, livro de estréia – seus poemas chamavam atenção de poetas consagrados, Carlos Drummond de Andrade e Ledo Ivo, e de críticos de nomeada, Marcus Frederico Krüger e Antônio Paulo Graça. Mas foi, seguramente, com Suíte para os habitantes da noite (Prêmio Nestlé de Literatura Brasileira, 1995) que o poeta amazonense alcançou, definitivo, dimensão nacional. Marcus Accioly, membro do júri, considerou o livro “um épico moderno que, contendo o lírico, alcança a essência do dramático”. E vai além. “Dentro da idéia do Mundo-Labirinto, de Friedrich Dürrenmatt, Aníbal Beça é Dédalo (construtor do Labirinto de palavras) e é Teseu (não perde o fio de Ariadne) desafiando o Minotauro do poema”.



A obra poética de Aníbal Beça o insere na primeira linha de autores modernistas da poesia brasileira contemporânea. Mas, ao contrário dos mais radicais, o poeta se articula com as duas vertentes de modernistas: a de escritores com a linguagem mais lírica, subjetiva (por exemplo, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira), a daqueles que possuem uma linguagem mais objetiva, experimental, formalista (João Cabral de Melo Neto) e a poesia concreta.



Poesia não é apenas um fato estético. Poesia é também um fato ético. Constrói-se para o nada e o nada é tudo. Poesia não tem utilidade prática, imediata, certo. Mas deve servir para alguma coisa, ou servir para alguém, mesmo que esse alguém seja o próprio poeta. Senão, por que escrevê-la? Por que publicá-la?



Nesse contexto, e hábil no manejo do verso, Aníbal é lírico, sem ser banal, sentimental, e moderno sem radicalismos. “Sem embargo/ trago sempre no alforje/ um fardo de estrelas:/ sei-me estivador/ desse cais agônico:/ atarefado Sísifo” (Poema cíclico).



A propalada liberdade literária - que se instaura no trabalho persistente sobre a linguagem. E que lhe permite, como poeta e amazônida, estender o primeiro olhar para “a continuidade perdida/ das vilas perdidas na floresta”. Ainda nesse mesmo reencontro com as raízes, o seu canto, entre o místico e o mítico, se transforma em vozes de celebração da vida, mais um curumim na várzea. Já o espera “um cocho de itaúba será o berço” – “para que o novo enviado aprenda,/ desde muito cedo, a convivência/ agridoce do olor da maniva”. Como tantos outros que o antecederam, “Ele virá da luz e das águas,/ das verdolengas águas de várzea./ Como a gárrula dos sábios prevê,/ crescerá gaio à fímbria de igapós.”(Verde que se faz verde premícia). Não há ouro, incenso ou mirra, nem reis vindo do Oriente, em “dóceis camelos”; mas em “Presságio de boas novas na várzea,/ oferendas dos pajés das terras:// do cheiro-verde, o viço fraterno;/ dos peixes, a esperança de vida;/ dos beijus, a noção do repartir”.



Aníbal Beça não é poeta de uma ilha só. Não aborda apenas o universo regional. O tema maior da composição poética é o homem, as angústias existenciais. Sua poesia busca um sentido para a vida, no diálogo poético com o homem. Onde quer que o homem esteja. Mas, como acontece com a boa poesia, nem sempre o poema se entrega fácil. Impõe várias leituras. Até que se possa romper-lhe a “pele”, para atingir o âmago do poema, a essência do poema. Vejamos, por exemplo, esses versos do poema “Primeira lição das facas”, dedicado a João Cabral de Melo Neto: “Essa faca não resgata/ nem de si a própria entranha,/ como cortante piranha/ que a si mesma se abocanha”. Ou quando o poeta nos diz sobre “a idade clara da chuva” (Líquida cantaria). É também o caso do poema “Noturno”: sob aparência de desorganizados na página, os versos (poesia concreta) se arrumam com a leitura de outro olhar e explodem na magia da leitura: “O cão mais que pretérito/ abandonado/ selenita/ uiva/ metade de sua origem/ al/ fa/ lu/ nar”.



Os versos, até aqui reproduzidos, são de Filhos da várzea (Editora Valer, 2ª edição, 2002). Trata-se de livro múltiplo. Um livro só que reúne vários outros. Ou nos dá essa impressão pela variedade de formas estabelecidas. Do poema livre ou de rimas brancas ao haicai, das redondilhas a poesia concreta.



Falei sobre Filhos da várzea porque o livro é como um rio largo e profundo, de águas revoltas a caminho do mar que conduzirá sempre o poeta a pontos raramente atingidos nas terras da Poesia. Mas Aníbal Beça tem outros livros publicados de poesia. De Itinerário da noite desmedida à mínima fratura (1987), com forte conteúdo subjetivo e riqueza de linguagem e metáforas, transcrevo fragmentos de alguns poemas: “Mínima fratura/ são estes curtos poemas:/ meu sol de falanges.// O rio é uma cabra/ berrante e bela balindo/ bemóis que são ondas” (Ofertório). “Manhãs se precipitam como búfalos/ em manadas lustrosas – sóis de ébano:/ E essas negras narinas tão agrestes/ expulsam ventos ázimos e flores” (Coplas das manhãs).”E desta herança ibérica que assoma/ esta minha ascendência lusitana/ afloram as tristezas desses traços/ nos mangues mais secretos do meu íntimo.// E fico a navegar nas calmarias/ sem a presença brava desses ventos/ sabendo que essa trégua dura pouco/ e o meu sobreviver é um mar revolto” (Coplas do mar).



O plantio dos sonhos na “várzea” da criação foi árduo mas eficiente. Os frutos da colheita são os poemas primorosos, de altíssima qualidade. O segredo: o talento e a paixão de Aníbal Beça pela palavra. A poesia em essência.