domingo, 23 de outubro de 2011

AMÁLIA RODRIGUES, INSUPERÁVEL

Triste Sina Amália Rodrigues Mar de mágoas sem marés Onde não há sinal de qualquer porto. De lés a lés o céu é cor de cinza E o mundo desconforto No quadrante deste mar, que vai rasgando, No horizonte, sempre venta à minha frente, Há um sonho agonizando Lentamente, tristemente... Mãos e braços, para quê? E para quê, os meus cinco sentidos? Se a gente não se abraça e não se vê, Ambos perdidos. Nau da vida que me leva Naufragando em mar de treva, Com meus sonhos de menina. Triste sina! Pelas rochas se quebrou E se perdeu aonde leva este sonho Depois ficou uma franja de espuma A desfazer-se em bruma No meu jeito de sorrir ficou vingada A tristeza, de por ti, não ser mais nada Meu senhor de todo o sempre, Sendo tudo, não és nada!

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

FLOR DO MAL


FLOR DO MAL


TÍTULO: FLOR DO MAL ENDEREÇO: Rua: Clarisse índio do Brasil, 32. CIDADE: Rio de janeiro. PERIODICIDADE: Não há como saber, pois só há um único exemplar no CEDAP que não possui data ou informação sobre a periodicidade. Nº DE PÁGINAS: 16. DATAS-LIMITES: 1971. EXEMPLARES: nº 4. REDAÇÃO/RESPONSÁVEL: Luis Carlos Maciel. ILUSTRAÇÃO: As ilustrações deste número são da autoria de Dicinho. COLABORADORES: Neste único exemplar os colaboradores foram: Jorge Mautner, Nando, Ivan Cardoso, Vera Duarte, ROGEL SAMUEL e E. Bono. CARACTERIZAÇÃO: O Jornal possui em sua capa uma caricatura. Há artigos em forma de poemas relacionados aos exagerados consumos industriais, críticas a escritores e compositores que escrevem em linguagens complicadas, entre outros. Há também artigos que criticam o PT e o cristianismo, além de uma entrevista com um monge japonês que peregrinou pelo mundo. DESCRIÇÃO: O jornal começou a circular em 04 de novembro de 1971.Foi um jornal destinado ao público jovem com um contexto “hippie”, no qual fala de música pop e literatura, esoterismo, ecologia, pé na estrada e cultura orienta.Seu título faz referência à obra de Baudelaire “Les Fleurs du Mal”. O periódico possui tendências de esquerda e também preza a liberdade cultural, política, sexual e religiosa. FONTE: além da análise do periódico, alguma informações foram retiradas do site: www.grafolalia.blogger.com.br

DALMA NASCIMENTO SOBRE "O AMANTE DAS AMAZONAS"


DALMA NASCIMENTO SOBRE "O AMANTE DAS AMAZONAS"


Impacto diante de sua narrativa semelhante à do narrador da oralidade, e cinematográfica mesmo, no dizer da Eliana. Visualizam-se, de fato, todas as cenas iniciais, montadas com metáforas poéticas, sem maiores pretensões. Escreveu o quadro de uma época( 1897) com muito vigor e beleza. significativamente com densas impressões.

Nota-se, desde aí, a intensa pesquisa em todos os níveis: detalhes topográficos, sociais, culturais, além de fortes traços dolorosamente psicológicos. E tudo isso, embolado/embalado criativamente ,emergindo , sintético, no palco mental do narrador memorialista.Tocantes os flashes da situação e do ambiente. Pincelou a utopia do Eldorado, o dado "lendário, mítico'" do seringal, atraindo e destruindo "gentes".. Excelente a descrição (p.13 ) do narrador, lembrando-se e vendo-se menino diante do possível olhar dos irmãos:" Eu magro, olhar esmagado sob uns cachos de cabelos castanhso que tinha, abandonado, surgido como aparição...." e a sua solidão existencial com Genaro e Antônio, ambos bichificados, modificados naquela odisseia perambulante do viver na selva. Todos expropriados.pelo poder tirãnico do capital.

Com diferente dicção, é certo, já que a especificidade de seu discurso é bem outra, recorda, em parte, a escrita de Graciliano e também de Guimarães Rosa. Você traduziu, naquela atmosfera, desconhecida, sagrada com "densa leveza" a dureza do seringal. Creio ser este o qualificativo mais apropriado para falar do "clima' da sua construção meio mágica, meio real, histórica, ao mesmo tempo, culta e popular: " Densa Leveza". . Ainda não sei bem definir seu livro. Porém, no calor das coisas, bem iniciais, quero dizer que estou gostando. Isso já basta, não? Respondo-lhe, assim, a sua mensagem abaixo: " Espero que goste".

Eis então as impressões iniciais nestas frases meio soltas. Não estou fazendo análise, mas relatando o que as primeiríssimas páginas me suscitaram diante da singeleza sofisticada do texto ( já bem o disse Eliana). Gostei também de sua linguagem coloquial com aqueles " quês", que sintaticamente são "porques" ( conjunção causal ) que a toda hora você, corretamente, usa. E os ganchos da oralidade do narrador " inculto'., para engatar a história são também muito adequados.

ELIANA BUENO-RIBEIRO SOBRE "O AMANTE DAS AMAZONAS"

ELIANA BUENO-RIBEIRO SOBRE "O AMANTE DAS AMAZONAS"

"Veja bem, nao digo, modestamente, que acho magnifico: afirmo que é magnifico, afirmo o que me parece uma evidência. Trata-se de uma obra-prima!" (ELIANA BUENO-RIBEIRO, de Paris)


Eliana Bueno-Ribeiro
Université Lumière Lyon, França -
Graduação em Letras Portugues Literaturas de Lingua Portuguesa pela Universidade Federal Fluminense (1970), mestrado em Letras (Ciência da Literatura) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1979) , doutorado em Letras (Ciência da Literatura) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1989) et pos-doutorado em Literatura Comparada na Université de Paris III - La Sorbonne Nouvelle, em 1991 e 1992. Atualmente é pesquisador associado na Universite de Rennes II. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura e Historia, atuando principalmente nos seguintes temas: literatura brasileira contemporânea, anos 30, memoria e formaçoes identitarias, teatro brasileiro do século XX.

Queria te dar algumas impressoes primeiras, de primeira leitura, sobre seu romance que como lhe disse é magnifico.

Veja bem, nao digo, modestamente, que acho magnifico: afirmo que é magnifico, afirmo o que me parece uma evidência.

Vou listar livremente alguns dos elementos que chamaram minha atençao.

1-Em primeiro lugar, a estrutura: casos. A Amazônia que nao tem ordem, nao pode ser ordenada, lida, explicada, so tem veredas, furos. Uma historia através de historias, como diz Rosa em Tutaméia. A presença de Rosa é percebida no bom sentido. Você é um herdeiro mas um herdeiro traidor. Rosa é ascendente, você descendente, ele seria digamos "positivo", solar, você "negativo", crepuscular. Sua Amazonia é também um mundo mas um mundo que se nega ao homem. Ao menos ao homem tal como o conhecemos, com o qual nos identificamos. Os Numas serao homens como nos?

A noçao de" fechamento", nao acho a palavra técnica, é obsedante. A Amazônia aparece maravilhosa no sentido de atraente e apavorante. O principio do mundo, disse você em algum momento. O principio de tudo.

2- O assunto: a Amazonia tratada como nunca li. Campo de luta. Natureza e Cultura mas também brancos e indios, ricos e pobres. Você escapa do chavao de opor homens e mulheres, homens e prostitutas. Nada do folclorico de Cruls, nada do todo branco de Hatoum. Nao é também a visao amorosa e compreensiva mas "de fora" de Darcy Ribeiro. Seu narrador fala ao mesmo tempo de fora e de dengtro. E Ribamar mas é também Benito Botelho, bebe até morrer no Bacurau e lê grego e latim ( perdoe-me a ignorância, de quem sao os versos que ele declama, que nao identifiquei?).

3- Os personagens: o intelectual, o politico, o negociante falido, as mulheres todas diferentes, o travesti mulher ( incrivel), o herdeiro. Sobra - sobra- finalmente o filho bastardo, desamparado, sobrante depois que tudo acabou que todo o romanesco desapareceu: o filho da puta.

4- A linguagem: meu amigo, a linguagem parece copiar a natureza que inspira o relato: esplêndida. A riqueza vocabular envolve , seduz o leitor, enlaça-o . Que frases! O primeiro paragrafo agarra o leitor e nao o deixa mais escapar. Li o livro em três dias porque tenho a rotina doméstica que nao pode ser rompida se nao o dia da familia nao anda. Se nao, teria lido em um so dia, de uma tacada so. Deixei o livro a cada vez com pena, contando o tempo para me reencontrar com a historia. O ritmo é ao mesmo tempo lento e impetuoso, impelindo a leitura, como parece ser o ritmo dos furos que o narrador descreve. Você tem frases, periodos, de cortar o fôlego ( nao vou parar para copia-los agora, farei isso depois). Nao é necessario que você diga que levou 10 anos escrevendo: é claro que um livro como esse nao se fez num dia. O trabalho sobre a linguagem é grande e tao grande que alcança a simplicidade enganosa.

5- As referências: vejo o especialista de Rosa. Mas como disse, o filho perverso. Vi também Conrad. A apariçao do Palacio através da mulher vestida de verde é impactante. E vi cinema. E um livro que parece inspirado pelo cinema e pronto para ser filmado. Imagistico.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

JEFFERSON BESSA para Rogel Samuel

para Rogel Samuel

poema lido, escrito:
que respira
o alheamento
dos olhos, do corpo
do poema.
poema lido, escrevo:
neste quarto
que habitamos

JEFFERSON BESSA

quarta-feira, 13 de julho de 2011

domingo, 10 de julho de 2011

Agnello Uchôa Bittencourt


ACADEMIA AMAZONENSE DE LETRAS

DISCURSO DE POSSE



Agnello Uchôa Bittencourt (*)

Para começar não direi, por um suposto dever de cortesia, que a deliberação de me trazerdes ao vosso convívio possa ter sido fruto de vossa generosidade ou de vossa indulgência. Seria desvalorizar os sufrágios que ensejaram esta investidura. Para minha honra e meu contentamento, reconhecestes em mim aptidão para dar continuidade às presenças aqui de Agnello Bittencourt e de Ulysses Bittencourt, ocupantes da cadeira que tem Gonçalves Dias por patrono.

Identifico-me com a Academia Amazonense de Letras desde quando, há 65 anos, assisti, deslumbrado, Alcides Bahia, Pericles Moraes e Waldemar Pedrosa comunicarem a meu pai a outorga da mesma titulação que esta Casa atribuiria em 1976 a meu irmão, a mesma com que agora me distinguis.

Ao sentar-me entre vós devo dizer, sim, da percepção da responsabilidade que passo a portar, e de quanto a prezo. Assumo o papel de vosso companheiro com orgulhosa humildade.

E se é de preceito fale o recipiendário sobre patrono e antecessores, logo vos digo que, quanto a Gonçalves Dias, nada tenho a acrescentar a quanto de sua vida e de sua obra disseram em livro Antonio Henriques Leal, Lúcia Miguel Pereira, Manuel Bandeira, Josué Montello e mais os conferencistas da série de estudos que lhe dedicou a Academia Brasileira de Letras.

No que tange à sua estada no Amazonas, de fevereiro a outubro de 1861, trata-se de assunto suficientemente esclarecido, que mereceu a atenção de vários escritores aqui militantes, inclusive meus antecessores. Optei, pois, por fazer-lhe uma referência breve, apenas um comentário sobre os dias passados em nossa província.

Quando Gonçalves Dias chegou a Manaus, lembra Montello, seis anos fazia que nele se calara o poeta.(1) Aqui, em paralelo às atividades de inspetor escolar e coordenador da coleta de peças para uma exposição a realizar-se no Rio de Janeiro, reativar-se-ia sua expressão poética.

Aos padecimentos físicos, por sua saúde precária, somava-se a erosão interior pelo que nele representava fosse a perda de Ana Amélia, fosse sua severidade em perceber-se responsável pela desdita da amada. Sentimentos que o trouxeram de volta à poesia.

Salvo uns de sarcasmo político, seus versos de Manaus evocam o malogrado amor a Ana Amélia e expõem a amarga reflexão com que o poeta, a propósito desse amor, se flagela.

Em carta de 25 de maio, sente-se “uma sombra, sem coração, sem gosto, sem futuro, como uma planta sem raízes”; em outra carta, de 25 de agosto, propõe-se a alguma reação, em cima do desalento: “Ia para o Peru, para a Índia, para o Inferno - mudei de tenção, volto para o Rio”.(2)

Gonçalves Dias morara em capitais da Europa; fora interlocutor de

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(1) MONTELLO, Josué. Introdução. Em: “Diário de Viagem ao Rio Negro”. Transcrição de Lúcia Miguel Pereira. Rio, Academia Brasileira de Letras (Coleção “Afrânio Peixoto”), 1997, pag.18
(2) Apud Pinheiro, Geraldo. Em: Clube da Madrugada. “Gonçalves Dias: 1864-1964” Manaus, Ed. Sergio Cardoso, 1965. Pag. 21.




Martius; no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o Imperador o ouvia. Agora, estava naquela aldeia parada no tempo, a ter hemoptises, com o casamento formal desestruturado e sem Ana Amélia - cheio de tédio e solidão.

Aqui, pois, não obstante o sucesso de suas missões administrativas, atravessou o poeta um momento existencial particularmente desfavorável.

Agora, neste instante, que para mim é de alegria, estou a trazer-vos a lembrança de registros sombrios da vida do patrono da cadeira em que vou sentar. Mas essa é a conotação do Amazonas nessa vida.

E também agora vos digo da carga emocional deste ato, ao sentar-me na cadeira que pertenceu a Agnello Bittencourt e a Ulysses Uchôa Bittencourt. Ao falar sobre eles, falo de pai e irmão: espero que não esperem de mim a obrigação do distanciamento crítico ou da frieza judicativa. Este não é um instante de questionamento e análise, este é um rito de saudade.

Desde professor rural a catedrático de Geografia do Colégio Estadual do Amazonas, Agnello Bittencourt exerceu o magistério por 52 anos, até aposentar-se.

Nos seus 99 anos, viveu um ciclo de mudanças radicais, quer em dimensão planetária, quer no âmbito de sua cidade natal.

Vejo-o em 1888, quando o Conde d’Eu esteve no Amazonas. De fato novo, ganho para a oportunidade, nem se dava conta do que olhava para o crepúsculo da Monarquia. Quando, no curso de minhas pesquisas, vim a ler as anotações manuscritas do próprio Conde sobre essa viagem, a minuciosa descrição que meu pai fazia de gestos, trajetos e trajes proporcionou-me como que olhar junto com ele tudo aquilo, compreendendo melhor tanto os episódios como o estilo de ser e conviver da época.

Vejo-o empolgado com a caçada da última onça de Manaus, morta na mata em frente onde hoje se ergue o Palácio Rio Negro, bem perto da casa do seu avô, casa pioneira, durante muito tempo ali isolada, razão de chamar-se àquele de “igarapé do Bittencourt”.

Vejo-o a receber uma bronca do Governador Eduardo Ribeiro: havia uma torneira aberta, o Governador entendeu que aquele rapazinho a abrira e deixara aberta; recriminou-o asperamente; o rapazinho ia passando, apenas parara a ver o Governador aproximar-se, a cavalo. Anos depois, o cidadão Agnello Bittencourt bendizia a injustiça, que demonstrava, no administrador vigilante, a determinação de defender o bem comum. Elson Faria frisou o episódio em um poema.

Vejo, ainda, Agnello Bittencourt, teria pouco mais de 18 anos, amanuense da Secretaria do Legislativo estadual, quando, no dia 25 de março de 1895, testemunhou, de sua mesa, a trama final para o não-reconhecimento de deputados da Oposição. Um dos contricantes advertiu: Fala baixo. Aquele é filho do Bittencourt. Não dava para parar. Fez-se o esbulho dos mandatos em sessão que começou às 10 horas da manhã quando regimentalmente deveria começar às 12. O foguetão do meio-dia, um ritual da cidade, estourou às 10. Apesar da evidência em contrário ficou valendo a fraude. Aquela legislatura passou a ser conhecida como “o Congresso Foguetão”. O futuro historiador Agnello Bittencourt vira e ouvira a História acontecer.

Tais são referências sem interesse maior para compor a descrição de uma vida. Ganham porém, significado quando o que se quer entender é a acumulação de vivência e, pois, a absorção e sedimentação de valores. No que Agnello Bittencourt teve uma inspiração constante: a vida de seu pai, Antonio Clemente Ribeiro Bittencourt, cuja imagem cultivava como um modelo ético e cívico. Aliás, por três vezes exerceria papéis que seu pai exercera: o de Prefeito de Manaus, o de Presidente do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, o de Grão-Mestre da Maçonaria do Amazonas e Acre.
De Antonio Bittencourt Agnello herdou a identificação com o Amazonas - um dado consubstancial de sua vida, a refletir-se na temática de sua obra. Para comprová-lo, basta citar três títulos em uma produção intelectual de cerca de 70 anos: sua tese de concurso, de 1905, procurou sistematizar quanto se sabia então da geografia do Amazonas; em 1925 esse esforço se amplia na “Corografia do Estado do Amazonas”; de 1973 é o “Dicionário Amazonense de Biografias”.

A primeira manifestação de militância intelectual de Agnello Bittencourt é o discurso que em 1893 proferiu ao definir-se a separação entre o curso de bacharelado em grau secundário e o de formação de professores, deste derivando o atual Instituto de Educação. Possuo o manuscrito desse discurso, com a mesma firme letra de toda a vida, a oferecer-nos o testemunho gráfico de sua precoce maturidade.

Em 1896, redação e oficinas do “Amazonas”, onde trabalhava, foram invadidas; a tipografia, empastelada; seu diretor, Raymundo Nunes Salgado, espancado. Nesse clima, o jornal reiniciou suas atividades sob a direção provisória de Francisco de Lima Bacury, tio de Agnello Bittencourt. Até a recuperação do diretor, um mês depois, Agnello fez o jornal, com a mesma linha política e a mesma vibração. Ainda não completara 20 anos. E, assinale-se, no jornal, em que, até pouco tempo atrás, fora tipógrafo.

Começando o século XX, lera o possível sobre a Amazônia. Amigo do Barão de Sant’Ana Nery, um clássico da Amazonologia, foi levá-lo a bordo do navio que o conduziria de volta à Europa. Aquela, em 1901, seria a última visita do Barão a Manaus. Aquela, então, estava sendo a última de tantas conversas de Agnello Bittencourt com o Barão sobre limites, lendas, missionários, castanha e borracha, tucunarés, o sairé, velhos cronistas.

Nessa fase, de fim de um século, de começo de outro, Agnello Bittencourt fez amizade com Bento Aranha, Bertino de Miranda Lima e João Baptista de Faria e Sousa, pesquisadores que tanto contribuíram para a História do Amazonas. Neles e em Bernardo Ramos, o “Beré”, encontrou estímulo para seu gosto por estudos históricos. A Bernardo Ramos acompanharia em 1917 na criação do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas.

Ainda nessa fase, é de mencionar sua constante interação intelectual com seu primo, o combativo e brilhante jornalista e orador Heliodoro Balbi.

A mesma paixão pela Amazônia que o ligava a Sant’Ana Nery e nutria sua articulação com Bertino, Bento Aranha, JB, Beré e Balbi, o levou a Ermano Stradelli, o jurista, poeta, etnólogo e linguista italiano, que se embrenhou em rios, serras e florestas, com seu título de conde esquecido, a interpretar os índios. A última vez que o viu Agnello Bittencourt foi em visita que lhe fez quando, pelos anos Vinte, o sábio pesquisador do mito de Jurupari se recolhera ao Umirizal, então uma colônia de hansenianos.

Diversos cursos d’água cortavam o aglomerado de casas predominantemente cobertas de palha em que foi menino: as ruas se arrumavam no interfluvio desses igarapés. Era de canoa que se ia para a escola. De canoa, Agnello ia visitar o avô, em outro igarapé. Veria os grandes aterros e sobre eles desdobrarem-se avenidas. Cresceu com a cidade. Viu o apogeu, viu o desabamento da economia e das ilusões, viu a modorra sem fim. Veria a animação fugaz da Batalha da Borracha, no momento da Segunda Grande Guerra. Veria a Zona Franca.

Por um lado, conservador. Foi um dos dois últimos usuários de fraque em Manaus - o outro foi o Prof. Vicente Telles de Souza. Por outro lado, mente aberta. Já passando dos noventa anos, soube ter simpatia aos estudantes de 1968.

Leitor infatigável, tinha fome de informações sobre a Amazônia. Assisti a conversas suas com práticos de rios sobre ilhas, curvas, paranás, sacados, rebojos, deltas, barrancos, distâncias. Amigo do Comandante Braz de Aguiar e do Major, depois Marechal Boanerges de Sousa, dedicados e competentes responsáveis pela demarcação de fronteiras, aproveitava de suas presenças em Manaus para informar-se sobre relevos do Sistema Parimo-guiano, cachoeiras, tribos, cabeceiras de rios e tudo quanto se relacionasse à fisiografia do contorno do território brasileiro no Norte e sua ocupação.

À disposição para aprender aliava a de repartir o sabido. Solicitado por um professor de currículo conspícuo, ou por um ginasiano, a um e a outro recebia com dados, indicações bibliográficas, acesso à sua biblioteca, e mais sala, papel e mesa, e um guaraná.

Suas aulas se caracterizavam pela fluidez da exposição, também por uma postura austera. Capaz de fazer cessar algum começo de turbulência sem uma palavra, somente com um olhar, sua irradiação de autoridade mal escondia como que um pudor da própria doçura.

Pelos meses finais de sua vida, em que morou com o filho também Agnello, amparado pela ternura e a competência da nora Letícia, e envolvido pelo carinho de familiares e amigos, tantas vezes de madrugada acordava e lhe ouvíamos a voz, inacreditavelmente forte: - Meu filho! E quando eu chegava: - Que horas são? Eu mentia: - São dez horas, pai - Então está cedo, dá tempo para conversar. Sempre temas de História da Amazônia: Lope de Aguirre, Pedro Teixeira, Antonio Vieira, os Carmelitas, Ajuricaba, Pombal, Mendonça Furtado, Pereira Caldas, Lobo d’Almada, a Cabanagem, o Barão de Solimões, a renúncia de Fileto Pires, o bombardeio de Manaus em 1910, o governo insurrecional de 1924. Administradores coloniais, políticos republicanos, fases, datações, fontes, nomes e feitos desfilavam pela madrugada. Creio que fiz, então, de pijama, uma espécie de mestrado.

Quatro dias antes de morrer, fragilizado, sem que percebesse as lágrimas que desciam dos meus olhos e dos de Letícia, ouvimo-lo recitar o “Sete anos de pastor Jacó servira” e, bem do fundo da memória, alguma coisa de cujo autor não se lembrava, talvez Gonçalves Crespo. Contou uma anedota potável de Bocage. E pediu que eu lhe lesse um poema de Claudel. Dormiu ouvindo Claudel. Não acordaria mais.

Relevem-me se esqueço de que esta é uma oração protocolar sujeita a disciplina do tempo. De repente, o texto me conduz.

Ora, prossigo.

Falo de Ulysses Uchôa Bittencourt, até há pouco ativo ocupante da cadeira patrocinada por Gonçalves Dias.

Ulysses preparou-se no Ginásio Amazonense Pedro II. Por esse tempo aplicava-se à produção de jornais estudantis. Lembro-me de seu empenho em redigir, obter anunciantes e promover a impressão do jornal “A Colmeia”, fainas desenvolvidas junto com Atila Sá Peixoto. Cheio de iniciativa, inquieto, incansável, pelo dia de Finados complementava a mesada vendendo velas na porta do cemitério, com o seu sócio, o hoje ilustre advogado Aldemir de Miranda - no que contavam com a torcida de suas famílias. Secundário feito, um dia Ulysses saiu de Manaus para ser aviador militar, matriculou-se na Escola de Veterinária do Exército. Com a extinção desta, completou o curso na então Universidade do Brasil. Indo ao Paraná em 1939, com uma carta de recomendação do seu cunhado, o Acadêmico Carlos de Araujo Lima, para o Interventor Manoel Ribas, e após uma viagem com este por uns dias, foi nomeado Prefeito de Guarapuava, na época nada menos que o maior município do Estado, algo como a quarta parte do território paranaense. Em Guarapuava, esse executivo de 23 anos deixou a marca de sua criatividade, dinamismo, energia, gosto de realizar. Testemunho de um magistrado que lá atuou e lá o conheceu, o Desembargador Lauro Fabrício de Melo Pinto: “O jovem prefeito modernizou a cidade, construiu estradas e pontes, e erigiu, pela primeira vez naquela velha região pastoril, um posto de monta, que melhorou sensivelmente o rebanho equino do município”. Em meio ao êxito administrativo, e não obstante o reconhecimento da comunidade, sentiu falta de Manaus, que não via há alguns anos. Pediu para deixar a Prefeitura, Manoel Ribas não quis acreditar, não lhe concedeu exoneração, deu-lhe uma licença, esperando que voltasse. No Amazonas veio a ocupar a cadeira de Geografia do Colégio Estadual, a qual fora de seu pai. De um desentendimento com o Diretor, o seu e meu amigo Machado e Silva, entendeu deixar o Colégio Estadual e regressar ao Rio de Janeiro. Aí, convocado para o Exército, serviria justamente no Paraná, em regimento comandado por um amazonense, o Coronel Salgado dos Santos. Em 1945 deixou o Exército e foi trabalhar no Departamento de Geografia e Estatística do Distrito Federal. Daí saiu para o Departamento de Renda Mercantil, em que se aposentou.

Com a aposentadoria passou a dispor de tempo para dedicar-se a escrever crônicas, publicadas na imprensa de Manaus. Nelas, com seu poder de evocação, em texto enxuto e fluente, conseguiu mobilizar o interesse e o enternecimento de muitos leitores, como pude comprovar em comentários que ouvi de tantas pessoas, tocadas por suas reminiscências, cuja exatidão procurava sempre escrupulosamente verificar. Esses textos reuniu-os em dois livros “Raiz” (1985) e “Patiguá” (1993), a este não tendo visto pronto.

Soube fazer amigos. Adorava ser-lhes útil. E até a quem mal conhecia prestava obséquios, como comprar no Rio e remeter para Manaus um livro ou um remédio; como acompanhar a situação de processos em repartições públicas. Do Mestre Arthur Reis, um dia, ouvi dizer a alguém que enfrentava uma dificuldade: - Fala com o Cônsul! - Que Cônsul? - O Cônsul do Amazonas. - E quem é o Cônsul do Amazonas? - Ora, é o Ulysses Bittencourt, telefone 236.2276.

Criara essa imagem por sua invariável disponibilidade para agradar. Apresentando “Patiguá”, Mario Ypiranga Monteiro lembrou essa investidura, legitimada pela gratidão de tantos.

Aliás, ao pronunciar esse nome, o de Mario Ypiranga Monteiro, quero destacar o quanto meus antecessores lhe devotavam apreço e lhe devota apreço este sobrevivente. Aluno de meu pai, colega de turma de meu irmão Mario - presos juntos os dois Marios em 1930 -, meu colega quando fui professor no Colégio Estadual, mantinha com Ulysses ativo relacionamento, temperado de admiração recíproca.

Sob a capa da cortesia e da militância da boa vontade, havia em Ulysses um impressionante lastro de determinação e coragem.

Lembro-me da cena. 1930. O Ginásio Amazonense cercado pela Polícia. Tiros. Tensão na cidade. Ninguém sabia como aquela confusa situação poderia terminar. Minha mãe, a professora Zulmira Uchôa Bittencourt, foi nos buscar, a mim e a meu irmão Antonio, na aula particular de D. Chiquita, na Rui Barbosa, ali perto da briga. Quando, quase correndo, atravessávamos a praça em frente ao Ginásio, um de seus lados com soldados agachados, fuzil à mão, Antonio e eu achando tudo ótimo, vimos o Ulysses, em seu uniforme de ginasiano, teria seus 14 anos, vindo no sentido do Ginásio. Minha mãe gritou: - Ulysses! Ulysses! Detido, informou que ia “engrossar a massa”. - Volta, Ulysses, estão atirando! - Por isso mesmo é que eu vou para lá. Contrariado, obedeceu.

No tempo em que Ulysses foi prefeito de Guarapuava, o Oeste do Paraná era uma região de bandidagem. Um delegado eficiente começou a prender bandidos. Na cadeia de Guarapuava já se acumulavam mais de cinquenta. Um dia, com o delegado ausente, houve um motim. Subjugaram a guarda, houve mortos, apropriaram-se de fuzis e munição, alguns fugiram. Não contavam com a pronta reação de Prefeito, Juiz e Promotor. Os três, armados, contiveram os que ficaram, dominando a situação.

No Rio, muitos anos depois, com a sua Fernanda, companheira exemplar de toda a vida, voltava à noite para casa quando um assaltante apontou-lhe um revólver. Não titubeou Ulysses, sequer segundos. Deu-lhe forte murro, derrubando-o Um vigor do seu tempo de remo no Manaus Rudder Clube. O bandido, no chão, atirou no mesmo instante em que levava violento pontapé. O tiro, dado naquela agitação, não acertou. Então, o bandido, diante de tanta disposição, levantou-se e saiu correndo, de arma na mão.

Se consoante o conhecido aforisma de Gasset, “Eu sou eu e minha circunstância”, não dá para falar de mestre Agnello e de mano Ulysses sem falar de Amazonas e Manaus, ingredientes indispensáveis, a cada instante, pela vida toda, do que foi a circunstância de um e de outro. Temas de estudo e objetos de amor, compartilhados em dimensão familiar, as gerações passando. Obrigação assumida e gosto. A ambos, caboclitude compulsiva, impregnava-os o sentimento de sua província.

A palavra província tem uma conotação menos nobre, a envolver certo efeito repressivo, mediocrizante e confinador, a de celebração do ranço, tantas vezes a mescla da autocomplacência com o rancor pelo sucesso do próximo. E tem a outra vertente semântica - a do enlevo e mesmo da prosápia daquela origem e daquela identidade, o mesmo enlevo e a mesma prosápia com que um se proclama gaúcho e outro se proclama pernambucano. Cada qual querendo dizer dos primores e da primazia de sua província. E aí o sentimento de província tem um efeito nutritivo e sublimador.

Para dar-vos um exemplo banal, permitam-me a jactância de lembrar de minha filha mais velha, então pelos seus seis anos, nascida no Rio, e que nunca pode vir a Manaus, a dizer-me como quem bota banca: - Nós amazonenses, e não me lembro de qual atributo exaltava desse povo eleito. Era a radicalização afetiva que vinha, por impulsão atávica, do bisavô Antonio, passara pelo avô Agnello e lhe chegava por pai e tios. Tal a força da imagem do Amazonas dentro de nós.

A imagem de nossa província, que portamos, e até com esse poder de contágio, costuma associar-se à de uma cidade, muito pessoal, que a emblematiza. Pois uma cidade é aquela que os olhos de todos enxergam, e também é outra. Além de determinada configuração tangível de ruas e gente, de cores e sons, suscetível de progresso ou decadência, parte do tecido da História, uma cidade é, também, e sobretudo, a do nosso espaço subjetivo, povoada de recordações amáveis ou mesmo docemente amargas - a lembrança viva somada de professores e namoradas, de porres e rixas, de serenatas e quermesses, de regatas e carnavais, de pastorinhas e comícios, de tias maravilhosas a abençoar-nos pelas seis da tarde, de amigos que se foram, de bondes que não rodam mais.

Milton Santos acentua a importância, para o estudo de uma sociedade, da relação entre espaço e tempo - a cada espaço significativo (país, no enunciado de sua reflexão) correspondendo temporalidade peculiar.(3)

A observação é tão válida que dá para qualificá-la, no universo de nossas cognições e referências, com foco mais fechado, e sobre espaços menores - a imagem que temos de nossa região, de nossa província, de nossa cidade, de nosso bairro. Para sermos precisos, podemos efetuar o recorte lírico de um pedaço de bairro. Como Thiago de Mello, no seu livro de amor a memória dedicado a Manaus, a lembrar-nos daquele território de afetos feito de uns fins de ruas - a Isabel, a Quintino Bocayuva, a Lima Bacury, a Dr. Almino. Ou como Luiz Bacellar oferecendo-nos a lembrança das 13 casas iguais, paredes-meias, do Bairro dos Tocos. Que foram de dona Donana e hoje são de todos nós, por sua mediação mágica.


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(3) Espaço e Sociedade. 2ª ed. Petrópolis, Vozes, 1962. Págs. 43-44




No mais longe de nossas reminiscências, o espaço de nossa infância contém um tempo congelado. Assim o de nossa adolescência. A infância e a adolescência de qualquer um. Lição de Bachelard: “Em seus mil alvéolos, o espaço retém o tempo comprimido”. (4)

Mas não é aí que quero chegar. Direi, desenvolvendo o modelo esboçado por Milton Santos, que a recíproca é verdadeira: na relação entre espaço e tempo, a cada estrato de tempo corresponde uma configuração de representações a compor nosso espaço subjetivo.

Uma cidade, ser vivo, dispõe do atributo de, mesmo sem deixar de existir, viver sucessivamente várias vidas, como que sucessivas encarnações. E, deste modo, na dinâmica das percepções de agora e das reminiscências, em cada um podem existir os envolvimentos de diferentes encarnações da mesma cidade.

Direi, então, que no espaço subjetivo de Agnello Bittencourt podemos supor sincronicamente duas Manaus: a da infância e da adolescência - aldeia ainda tosca, e já ambiciosa, seu tanto bovarista, com as sementes brotando do delírio que fazia e faria teatro, mercado, porto, pontes, avenidas e palácios; e a da cidade que viveu a plenitude do delírio e viveria o amargor da ressaca - aquela cidade em sua fase vibrante, tudo novo, de que foi prefeito, e em sua comprida fase de decadência, ou estagnação, ou digna acomodação, desde a queda dos preços da borracha até o advento da Zona Franca.

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(4) A Poética do Espaço. Em “A Filosofia do Não. O Novo Espírito Científico. A Poética do Espaço”. Trad. De Antonio da Costa Leal e Lidia da Costa Leal. São Paulo, Abril Cultural, 1978. Pág. 202.




No espaço subjetivo de Ulysses Bittencourt e os de sua geração, em que me incluo, distinguem-se, também, duas temporalidades: a da cidade de menos de 200.000 habitantes - ressentida, resmungadora e nostálgica, sem deixar de ser risonha; e outra, entre crescida e inchada, a da Zona Franca, que logo ultrapassaria o milhão de habitantes.

De uma temporalidade a outra, e a outra: dois estilos de viver o tempo, dois padrões de atitude, dois ritmos de ser. Aplico a nós, amazonianos, mais que amazonenses, um modelo de análise proposto por Gilberto Freyre: digo que vivemos a tensão dialética entre um tempo hispanotropical, melhor dizendo hispanocaboclo, e um tempo anglo-saxão - modos de olhar e estar no mundo.(5)

A vigência do tempo hispanocaboclo se traduz em papos intermináveis de bar, lancha, clube ou esquina sobre literatura, filosofia, futebol, política ou sacanagem; se associa a uma forma sensual de adesão ao entorno, com seresta, pescaria, chamego e sesta; não dispensa a caldeirada de tucunaré mais uma cervejinha. Uma vivência cheia de sabedoria na organização do lazer, a ensejar, por exemplo, o Clube da Madrugada.

A vigência do tempo anglo-saxão vem com as pressas e as pressões da ânsia de progresso e se expressa em uma agressiva ganhação de vida, com discurso racionalizante e sujeição obsessiva ao cálculo, à programação, ao calendário.

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(5) Sobre os conceitos e as implicações de um “tempo hispânico” e um “tempo anglo-saxão”, ver: Freyre, Gilberto. O Brasileiro entre outros Hispanos: afinidades, contrastes e possíveis futuros nas suas inter-relações. Rio, José Olympio/MEC, 1975.




Com uma postura que tende ao lúdico, impregnam o jeito hispanocaboclo de sentir o mundo e de usar o tempo valores e modos em boa parte contemplativos, sem que o ser facundo exclua necessariamente o ser fecundo.

Com uma postura que se pretende utilitária, o jeito anglo-saxão de sentir o mundo e usar o tempo impregna-se de valores e modos essencialmente ativistas.(6)

A coexistência na mesma sociedade e no mesmo indivíduo dessas percepções do mundo, da vida e do tempo acaba suscitando “um conflito entre o gosto pelo ócio e a paixão do negócio”. (7)

A Zona Franca mudou Manaus, para o bem e para o mal. Mudou a fisionomia das ruas, a escala dos negócios, o mercado de trabalho, as opções de lazer, a pauta das aspirações, a estrutura do poder. Foi um salto qualitativo do modo de produção. Foi um salto quantitativo da concentração de gente. Um processo, em curso, que trouxe soluções e trouxe problemas. Com uma forte expansão dos lucros e da massa de salários e também um agravamento da dívida social - a ampliar o contingente de excluídos e as condições sub-humanas de sua sobrevivência. De fato, um processo nacional e mesmo mundial, acentuado com singularidades locais, inclusive a permanência, ao lado, do extrativismo, como vem de mostrar mestre Samuel Benchimol, professor de todos nós. (8)
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(6) Id., ibid. Pág. XXXV
(7) Id. Ibid. Pág. 49
(8) Benchimol, Samuel. Zona Franca de Manaus: pólo de desenvolvimento industrial. Manaus, Universidade do Amazonas - Federação das Indústrias do Amazonas - Associação Comercial do Amazonas, 1997.



Descabe julgar a Zona Franca somente pelo que ela é hoje, e como é, a enfrentar a globalização e os pólos regionais. Importa, para entendê-la, invocar o passado, lembrando-nos de que quando foi instituído o modelo, encaminhava-se o Amazonas para a inviabilização. Importa invocar também o futuro, indagando se alguém, na hipótese de perecimento da Zona Franca, dispõe de outro modelo para manter a Amazônia Interior funcionando e funcionando integrada no Brasil.

Um parêntese pessoal. Não o digo como um exercício de nostalgia pela cumplicidade, ínfimo papel, há trinta anos, com Artur Amorim, ao criar-se a Zona Franca. A primeira minuta, a que veio a Manaus para discussão e reformulação, foi redigida por mim, sob encomenda e orientação de Artur. Quando me telefonou expondo suas idéias e querendo um texto que as articulasse sob forma de lei, disse-lhe: - Vou fazer, é muito ousado, uma linda loucura. Ao darmos uma olhada final no projeto - Artur, Alberto Rocha e eu -, entendi que ali se começara a construir uma ponte para a Utopia.

Até que ponto as alterações objetivas do espaço econômico, com seu halo social, são absorvidas pelo equilíbrio de cada espaço subjetivo? Direi que em cada espaço subjetivo ocorre um ajustamento de valores e modos entre um tempo que foi, aprisionado em nossa essência, mais para o hispanocaboclo, e o tempo que está sendo, mais para o anglo-saxão.

Não sei aonde chegaremos, sabendo-se que há o risco de, ao invés de integração, se dê confusão, e ao invés de resultarmos plurais resultemos promíscuos. Temo que o êxito material, às vezes ruidoso, atribuível ao prevalecimento do tempo anglo-saxão, sufoque em nós o tempo hispanocaboclo, que quase nos leva a desdenhar do calendário e do relógio, em função do prazer do convívio. Temo que o processo se faça desamazonizante, que nos desfigure, que nos distancie de como bem éramos e mal ainda somos.

Apenas um sintoma. Pergunto daqui, pergunto dali, fiquei sabendo que as crianças de Manaus não têm mais medo da Matinta Perêra, do Curupira e do Mapinguari - estetizações do respeito à Natureza, base de séculos de boa interação entre espaço e gente. Mitos da floresta, anos atrás, no tempo de minha infância, com forte incidência urbana. As crianças de Manaus não mais os temem. Nem sabem do que se trata. Descaboclizam-se.

Isto é: descabocliza-se a sociedade. Nesse sentido de que o entranhado amor ao Amazonas inteiro como um pedaço do Brasil, tão presente na vida de Agnello Bittencourt e na de Ulysses Uchôa Bittencourt, começa a diluir-se. E tanto e tanto que até parece dar-se algo como uma alienação, de que é sinal a perda de sensibilidade para as ameaças à nossa integridade territorial - como que a esgarçar-se o que deveria ser uma cláusula pétrea no nosso sistema de valores.

Precisamos de um consenso regional de governos e sociedade na definição de projeto viável, a permitir possamos bem entrar no Terceiro Ciclo, a que se refere o Governador Amazonino Mendes.

Esse consenso é indispensável para estimular, em nível nacional, a vontade política de resguardar a Amazônia, valorizando-a. Como aconteceu ao criar-se a Zona Franca, sob a inspiração do Presidente Castello Branco - vontade política instrumentada pelo Ministro Roberto Campos, com a colaboração do amazonense Artur Amorim.

Vale recordar a conceituação do esquecido Mannheim: a de utopia como figuração do futuro, a transcender a realidade que está aí - um futuro modelado pela vontade de romper os laços da ordem existente. (9) No nosso caso, os laços do subdesenvolvimento ou do desenvolvimento perverso, com miséria estrutural.

Nossa circunstância se alterou; e se altera, aceleradamente. A isso correspondem alterações adequadas dentro de nós? Estamos resolvendo o conflito entre a consciência do que temos de ser, pelas exigências do aqui e do agora, e o a que não deveremos renunciar - nossa caboclitude ancestral. A História metabolizará esse conflito. A julgar, na qualidade de nosso desempenho, nossa capacidade de, sem desfigurar-nos, sabermos mudar - a capacidade de temperar o tempo anglo-saxão com o tempo hispano-caboclo, a capacidade de sermos nós mesmos e sabermos tanto inventá-la como bem gerenciar nossa utopia.


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(9) Mannheim, Karl. Ideologia e Utopia. Introdução à Sociologia do Conhecimento. Trad. De Emilio Willems. 2ª ed. Porto Alegre, Globo, 1952, pág. 179.



quarta-feira, 6 de julho de 2011

Discurso de Posse de Joaquim Nabuco


Discurso de Posse

Discurso pronunciado na Sessão inaugural da Academia Brasileira de Letras, em 20 de julho de 1897, na qualidade de Secretário Geral.

Meus Senhores,

Uma vez que conversávamos sobre os nossos estatutos achei ousado darmos, como tranqüilamente se propunha, o título de perpétuo ao nosso secretário; pensava eu então no constrangimento do nosso colega a quem tocasse lançar aquele soberbo desafio ao nosso temperamento. Não imaginava estar falando em defesa própria. A primeira condição de perpetuidade é a verossimilhança, e o que tentamos hoje é altamente inverossímil. Para realizar o inverossímil o meio heróico é sempre a fé; a homens de letras que se prestam a formar uma Academia, não se pode pedir fé; só se deve esperar deles a boa-fé. A questão é se ela bastará para garantir a estabilidade de uma companhia exposta como esta a tantas causas de desânimo, de dispersão e de indiferentismo. Se a Academia florescer, os críticos deste fim de século terão razão em ver nisso um milagre; terá sido com efeito um extraordinário enxerto, uma verdadeira maravilha de cruzamento literário.

A nossa formação não passará incólume; seremos acusados de nos termos escolhido a nós mesmos, de nos termos feito Imortais e em número de quarenta. Se não tivéssemos quadro fixo, receávamos não ser uma companhia. Tendo-o, se fôssemos menos de quarenta, como não se diria: “A Academia Francesa, que é a Academia Francesa, e se reúne em Paris, donde ninguém quer sair, precisa ter quarenta membros para trabalhar, e entre nós, onde ninguém se reúne, no Rio de Janeiro, donde se vive em Paris, julgamos poder ter só vinte, ou trinta?” Se fôssemos mais, estais ouvindo o tom de desdém: “A França, que é a França, só tem quarenta acadêmicos, e nós, que não temos quase literatura, temos a pretensão de ter cinqüenta.” O número de quarenta era quase forçado, por que não dizê-lo? tinha a medida do prestígio, esse quê simbólico das grandes tradições, o cunho do primi capientis: as proporções justas de qualquer criação humana são sempre as que foram consagradas pelo sucesso. Não tomamos à França todo o sistema decimal? Podíamos bem tomar-lhe o metro acadêmico. Nós somos quarenta, mas não aspiramos a ser os Quarenta.

Quanto à escolha própria, como podia ser evitada? Nenhum de nós lembrou o seu próprio nome; todos fomos chamados e chamamos a quem nos chamou... Houve uma boa razão para nos reunirmos ao convite do Sr. Lúcio de Mendonça; é que, exceto essa, só havia outra forma de apresentação: a oficial. Não seria decerto mais inspirada, e não podia ser tão ampla, a nomeação por decreto, e uma eleição pública havia de ressentir-se da cor local. De qualquer modo que se formasse a série dos primitivos, a origem seria imperfeita; resultariam iguais injustiças. Não temos de que nos afligir: todas as Academias nasceram assim. Que era a Academia Francesa quando a Richelieu ocorreu insuflar-lhe o seu gênio, associá-la à sua missão? Era uma reunião de sete ou oito homens de espírito em Paris. E as Academias, as Arcádias todas do século passador? Qualquer pretexto é bom para nascer... Não se deve inquirir das origens. Quando a vida aparece, é que o inconsciente tomou parte na concepção, e com a vida vem a responsabilidade, que enobrece as origens as mais duvidosas. Quem nos lançará em rosto o nosso nascimento, se fizermos alguma coisa; se justificarmos a nossa existência; criando para nós mesmos uma função necessária e desempenando-a? Acaso tem o ator que provar ao público o seu direito de existir? Não basta a emoção que desprende de si e faz passar por todos nós? E o pintor, o escultor, o poeta? Não basta a obra?

Na formação do primeiro quadro era preciso atender à proporção de ausentes. A Europa exerceu sempre sobre a imaginação dos nossos homens de letras uma atração perigosa. Houve, talvez, tempo em que Magalhães, Gonçalves Dias, Porto-Alegre, Odorico Mendes, João Francisco Lisboa, Sales Torres-Homem, Maciel Monteiro, Gomes de Sousa, Varnhagen, Joaquim Caetano, Pereira da Silva, podiam ter formado uma Academia Brasileira em Paris. Isso vinha de trás, e continua hoje com mais força. Bem poucos dos nossos homens de letras recusariam em qualquer tempo um desterro para longe do país. Há felizmente muito entre nós, quem de coração, de sentimento, pela imaginação, pelo espírito, por todo o prazer de viver, prefira o quadro, o aspecto, a sensação do nosso torrão brasileiro a todos os panoramas d'arte da Europa. Para se ser assim tão sincero, tão definitivamente brasileiro, - em alguns isso vem de uma reação natural contra o egoísmo estético - parece, a julgar pelo nosso confrade, o autor da Retirada da Laguna, que o melhor é ter tido no sangue a inoculação da própria arte européia. Como quer que seja, foi preciso contar com essa migração certa do talento nacional, com esse tributo que ele pagou sempre a Paris.

Havia também que atender à representação igual dos antigos e dos modernos... Uma censura não nos hão de fazer: a de sermos um gabinete de antigualhas. A Academia está dividida ao meio, entre os que vão e os que vêm chegando; os velhos, aliás sem velhice, e os novos; os dois séculos estão bem acentuados, e se algum predomina é o que entra; o século XX tem mais representação entre nós do que o século XIX. Quanto a mim, já tomei o meu partido... Uma vez me pronunciei entre os dois e como o fiz no livro de uma jovem senhora do nosso patriciado, pedir-lhe-ei licença para reproduzir, creio que nos mesmos termos, essa minha última profissão de fé. “Nascido, dizia eu, em uma época de transição, prefiro em tudo, arte, política, religião, ligar-me ao passado que ameaça ruína do que ao futuro que ainda não tem forma.” É apenas, como vedes, uma preferência; resta-me ainda muita simpatia pela quimeras que disputam umas às outras o toque da vida e muita curiosidade pelas invenções e revelações iminentes. Eu não sou o poeta do quadro de Gleyre, vendo a barca das ilusões perdidas, dourada pelo crepúsculo da tarde, e abismado no seu próprio isolamento. o coração, que é a parte fixa de nós mesmos, está em mim voltado para o céu estrelado, para a cúpula de verdades imortais, de princípios divinos, que sucede ao trabalho, aos esforços, às ardentes decepções do dia. Oh!.., meus senhores, é quando a vida para, que se tem a plenitude do viver. Ao contrário de tudo o mais, a vida, falo da vida intelectual, não é o movimento; é a parada do espírito, a absorção, a dilatação infinita do pensamento em um só objeto, em um só gozo, em uma só compreensão. Quieta non movere. Serei talvez um velho imaginário; é o meio de não ser um jovem imaginário. Há na vida uma coisa que não se deve fingir: - é a mocidade.

Devo confessar-vos que assim pensada, com uma ou outra lacuna, das quais algumas se explicam pela recusa dos escolhidos, e com uma exceção apenas, a nossa lista de nomes parece representar o que as nossas letras possuem de mais distinto. Algumas das nossas individualidades mais salientes nos estudos morais e políticos, no jornalismo e na ciência, deixaram de ser lembradas... A literatura quer que as ciências, ainda as mais altas, lhe dêem a parte que lhe pertence em todo o domínio da forma. Outros nomes, estes literários, estão ausentes, alguns, porém, renunciaram às letras. Devo dizer que compreendo a omissão destes: a uma Academia importa mais elevar o culto das letras, o valor do esforço, do que realçar o talento e a obra do escritor. Decerto, deixamos ao talento a liberdade de se apagar. Alguém fez uma bela obra? Admiremos a obra e deixemos o autor viver como toda gente; não o forcemos, querendo que se exceda a si mesmo, a refazer-se, uma e mais vezes, a viver da sua reputação, diminuindo-a sempre. Não o condenemos a sério, deixemo-lo desaparecer na fileira, depois de ter feito uma brilhante ação como soldado. A altivez do talento pode consistir nisso mesmo, em não diminuir. É a primeira liberdade do artista, deixar de produzir; não, porém, renunciar a produzir; repelir a inspiração, abdicar o talento, deixar a imaginação atrofiar-se. Isso é desinteressar-se das suas próprias criações anteriores, as quais só podem viver por essa cultura literária, que perdeu para ele toda a primazia.

Não há em nosso grêmio omissão irreparável; a morte encarrega-se de abrir nossa porta com intervalos mais curtos do que o gênio ou o talento toma para produzir qualquer obra de valor. Nós, os primeiros, seremos os únicos acadêmicos que não tiveram mérito em sê-lo, quase todos entramos por indicação singular, poucos foram eleitos pela Academia ainda incompleta, e nessas escolhas cada um de nós como que teve em vista corrigir a sua elevação isolada, completar a distinção que recebera; só dora em diante, depois que a Academia existir, depois de termos uma regra, tradições, emulação, e em torno de nós o interesse, a fiscalização da opinião, a consagração do sucesso, é que a escolha poderá parecer um plebiscito literário. Nós de fato constituímos apenas um primeiro eleitorado.

As Academias, como tantas outras coisas, precisam de antiguidade. Uma Academia nova é como uma religião sem mistérios: falta-lhe solenidade. A nossa principal função não poderá ser preenchida senão muito tempo depois de nós, na terceira ou quarta dinastia dos nossos sucessores. Não tendo antiguidade, tivemos que imitá-la, e escolhemos os nossos antepassados. Escolhemo-los por motivo, cada um de nós, pessoal, sem querermos, eu acredito, significar que o patrono da sua Cadeira fosse o maior vulto das nossas letras. Foi assim, pelo menos, que eu escolhi a Maciel Monteiro. Nesse misto de médico poeta, de orador diplomata, de dandy que vem a morrer de amor, elegi o pernambucano. A lista das nossas escolhas há de ser analisada como um curioso documento autobiográfico; está aí o sentido da minha. Entretanto, como nenhum de nós preocupou-se de escolher a maior figura de nossas letras, pode ser que algumas delas não figurem nesse quadro. Teremos meio de reparar essa falta com homenagens especiais. Restam apenas cinco cadeiras: já não há lugar para entrarem juntos Alexandre de Gusmão, Antônio José, Santa Rita Durão, São Carlos, Mont'Alverne, José da Silva Lisboa, Porto-Alegre, Sales Torres-Homem, José Bonifácio, o avô e o neto, Antônio Carlos, J. J. da Rocha, Odorico Mendes, Ferreira de Meneses.

Basta essa curta história de nossa formação para se ver que não podemos fazer o mal atribuído às Academias pelos que não querem na literatura sombra da mais leve tutela, do mais frouxo vínculo, do mais insignificante compromisso. É um anacronismo recear hoje para as Academias o papel que elas tiveram em outros tempos, mas se aquele papel fosse ainda possível, nós teríamos sido organizados para não o podermos exercer. Se percorrerdes a nossa lista, vereis nela a reunião de todos os temperamentos literários conhecidos. Em qualquer gênero de cultura somos um México intelectual; temos a tierra caliente, a tierra templada e a tierra fría... Já tivemos a Academia dos Felizes; não seremos a dos Incompatíveis, mas na maior parte das coisas não nos entendemos. Eu confio que sentiremos todo o prazer de concordarmos em discordar; essa desinteligência essencial é a condição da nossa utilidade, o que nos preservará da “uniformidade acadêmica”. Mas o desacordo tem também o seu limite, sem o que começaríamos logo por uma dissidência. A melhor garantia da liberdade e independência intelectual é estarem unidos no mesmo espírito de tolerância os que vêem as coisas d'arte e poesia de pontos de vista opostos. Para não podermos fazer nenhum mal basta isso; para fazermos algum bem é preciso que tenhamos algum objetivo comum. Não haverá nada comum entre nós? Há uma coisa: é a nossa própria evolução; partimos de pontos opostos para pontos opostos, mas, como astros que nascessem uns a leste e outros a oeste, temos que percorrer o mesmo círculo, somente em sentido inverso. Há assim de comum para nós o ciclo, o meio social que curva os mais rebeldes e funde os mais refratários; há os interstícios do papel, da característica, do grupo e filiação literária, de cada um; há a boa-fé invencível do verdadeiro talento. A utilidade desta companhia será, a meu ver, tanto maior quanto for um resultado da aproximação, ou melhor, do encontro em direção oposta, desses ideais contrários, a trégua de prevenções recíprocas em nome de uma admiração comum, e até, é preciso esperá-lo, de um apreço mútuo.

Porque, senhores, qual é o princípio vital literário que precisamos criar por meio desta Academia, como se compõe a matéria orgânica em laboratórios de química? É a responsabilidade do escritor, a consciência dos seus deveres para com sua inteligência, o dever superior da perfeição, o desprezo da reputação pela obra. Acreditais que um tal princípio limite em nada a espontaneidade do gênio? Não, o que faz é somente impor maiores obrigações ao talento. A responsabilidade não pode ameaçar nenhuma independência, coartar nenhuma ousadia; é dela, pelo contrário, que saem todas as nobres audácias, todas as grandes rebeldias. Em França, a Academia reina pelo prestígio de sua tradição; exerce sua influência pela escolha, pela convivência e pelo tom; mantém um estilo acadêmico, como toda a arte francesa, convencional, acabado, perfeito, e que só poderia parecer estreito a um gênio do Norte, como Shakespeare. Mas não é do destino da França produzir Shakespeare... Nós não temos por missão produzir esse estilo, o qual, como toda concepção intelectual, escapa à vontade e ao propósito, pode ser guardado e cultivado, mas não pode ser criado, obedece a leis de cristalização de cada idioma, à simetria de cada gênio nacional. Nós pretendemos somente defender as fontes do gênio, da poesia e da arte, que estão quase todas no prestígio, ou antes na dignidade da profissão literária... Não tenhamos tanto ciúme do gênio, o gênio há de revelar-se de qualquer modo; ele faz a sua própria lei, cria o seu próprio berço, esconde o seu nascimento, como Júpiter infante, no meio dos seus coribantes.

Além da deferência devida à companhia a que me faziam pertencer, confesso-vos que aceitei a honra que me foi feita, atraído pelo prazer de me sentir ao lado da nova geração. Cedi também, devo dizer-vos, à necessidade que sente de atividade, de renovação um espírito muito tempo ocupado na política e que de boa-fé acredita ter voltado às letras. Na Academia estamos certos de não encontrar a política. Eu sei bem que a política, ou, tomando-a em sua forma a mais pura, o espírito público, é inseparável de todas as grandes obras: a política dos Faraós reflete-se nas pirâmides tanto quanto a política ateniense no Partenon; o gênio católico da Idade Média está na Divina Comédia, como o gênio da protestante do Protetorado está no Paraíso Perdido, como o gênio da França monárquica está na literatura e no estilo dos séculos XVII e XVIII...

Nós não pretendemos matar o literato, no artista, o patriota, porque sem a pátria, sem a nação, não há escritor, e com ela há forçosamente o político. Até hoje, apesar do cristianismo, que trouxe o sentimento de uma comunhão mais vasta, o gênio nada fez fora da pátria ou, pelo menos, contra a pátria. A pátria e a religião são em certo sentido cativeiros irresgatáveis para a imaginação, condições do fiat intelectual. Compreendeis o artista grego que em réplica a Ésquilo esculpisse o Persa? Ou o poeta francês que depois de Sedan cantasse o Alemão? A política, isto é, o sentimento do perigo e da glória, da grandeza ou da queda do país, é uma fonte de inspiração de que se ressente em cada povo a literatura toda de uma época, mas para a política pertencer à literatura e entrar na Academia é preciso que ela não seja o seu próprio objeto; que desapareça na criação que produziu, como o mercúrio nos amálgamas de ouro e prata. Só assim não seríamos um parlamento.

Disse-vos, porém, que vim seduzido pelo contato, eu quisera que se pudesse dizer o contágio, dos moços. Como as diferentes idades da vida se compreendem mal uma a outra! - é a observação que vou fazendo à medida que caminho. Asseguro-vos que não suspeitava do que é a vista da mocidade tomada da outra margem da vida... Os que envelhecem não compreendem mais o valor das ilusões que perderam; os jovens não dão valor à experiência que ainda não têm. Há dois climas na vida, o passado e o futuro. A Academia, como o nobre romano, tem a sua villa dividida em casa de verão e em casa de inverno. Podeis habitar uma ou outra, conforme o vento soprar. Eu direi somente a todos os novos espíritos ambiciosos de abrir caminho para a glória: não receiem a concorrência dos mais velhos; sejam jovens e hão de romper tão naturalmente, como os rebentos da primavera rompem a casca da árvore rugosa. Basta a mocidade, se for verdadeiramente a vossa própria mocidade que expressardes, para vos dar o nome.

O escritor que chegou à madureza é, só por isso, o representante de um estado do espírito que preencheu o seu fim. Não há mocidade perpétua, o vosso privilégio está garantido... Quando se fala da mocidade perpétua de um escritor, como Molière, por exemplo, não se quer dizer que não envelheceu, mas que o fundo de verdade humana que ele recolheu e exprimiu continua a ser sempre verdadeiro. Não é que o escritor ou a obra guardasse a sua deliciosa frescura; é que a humanidade, sempre jovem, se reconheceu a si mesma sob os traços de outra época e acha em vê-los o mesmo prazer, se não maior! - do que em sua imagem atual. Eu leio em Elisée Reclus: “Acima da sua grande queda o São Francisco possui formas particulares de peixes inteiramente diversas das que vivem abaixo; o invencível precipício separou as duas faunas.” Não tenhais medo da concorrência... estais acima da grande queda. Uma advertência, porém. Às vezes não são as gerações somente que envelhecem uma após outra; sente-se também envelhecer a raça. A manhã torna-se então incrivelmente curta, como nos trópicos, e o perfume da mocidade cada vez mais inapreensível ao calor do sol que se levanta. “Não há que se apressar nas coisas eternas”, é uma dessas admiráveis frases do grande místico inglês. Não vos apresseis em compor a obra que há de conservar para vós mesmos a essência de vossa mocidade.

Eu li há pouco umas páginas, na Biblioteca de Buenos Aires, assinadas pelo General Mitre, a quem sinceramente admiro; a idéia é que a literatura hispano-americana não produziu ainda um livro. Que livro, diz ele, se tomaria para uma viagem, - eu acrescentarei, para o exílio? Senhores, hoje nenhum de nós se contentaria com um livro; um livro em poucos dias está lido e não gostamos de reler -; para uma viagem de dias precisamos levar uma biblioteca... Numa página sedutora, Emile Gebhart pintava ultimamente Cícero, condenado à morte, fazendo esperar a liteira em que se podia salvar, por não saber que livro levasse consigo para os longos instantes da proscrição... Nós podemos compreender-nos na sentença de Mitre: não tivemos ainda o nosso livro nacional, ainda que eu pense que a alma brasileira está definida, limitada e expressa nas obras de seus escritores; somente não está toda em um livro. Esse livro, um extrator hábil podia, porém, tirá-lo de nossa literatura... O que é essencial está na nossa poesia e no nosso romance. O livro é uma vida; em um livro deve estar o homem todo, e nós não sabemos mais fundir o caráter na obra, sem o que não pode haver criação. Em um certo sentido toda criação é, se não um suicídio, uma larga e generosa transfusão do próprio sangue em outras veias. Temos pressa de acabar. Estamos todos eletrizados; não passamos de condutores elétricos, e o jornalismo é a bateria que faz passar pelos nossos corações essa corrente contínua... Se fôssemos somente condutores, não haveria mal nisso; que sofrem os cabos submarinos? Nós, porém, somos fios dotados de uma consciência que não deixa a corrente passar despercebida de ponta a ponta, e nos faz receber em toda a extensão da linha o choque constante dessas transmissões universais...

Esperemos que a Academia seja um isolador, e que do seu repouso, da sua calma, venha a sair o livro em que o General Mitre vê o sinal da força, da musculatura literária... Eu pela minha parte não sei que ópera não daria por uma só frase de Mozart ou de Schumann; trocaria qualquer livro por uma dessas palavras luminosas que brilham eternamente no espírito como estrelas de primeira grandeza... A obra de quase todos os grandes escritores resume-se em algumas páginas; ser um grande escritor é ter uma nota sua distinta, e uma nota ouve-se logo; de fato, ele não pode senão repeti-la.

A principal questão ao fundar-se uma Academia de Letras brasileira é se vamos tender à unidade literária com Portugal. Julguei sempre estéril a tentativa de criarmos uma literatura sobre as tradições de raças que não tiveram nenhuma; sempre pensei que a literatura brasileira tinha que sair principalmente do nosso fundo europeu. Julgo outra utopia pensarmos em que nos havemos de desenvolver literariamente no mesmo sentido que Portugal ou conjuntamente com ele em tudo que não depende do gênio da língua. O fato é que, falando a mesma língua, Portugal e Brasil têm de futuro destinos literários tão profundamente divididos como são os seus destinos nacionais. Querer a unidade em tais condições seria um esforço perdido. Portugal, decerto, nunca tomaria nada essencial ao Brasil, e a verdade é que ele tem muito pouco, de primeira mão, que lhe queiramos tomar. Uns e outros nos fornecemos de idéias, de estilo, de erudição e pontos de vista, nos fabricantes de Paris, Londres ou Berlim... A raça portuguesa, entretanto, como raça pura, tem maior resistência e guarda assim melhor o seu idioma; para essa uniformidade de língua escrita devemos tender. Devemos opor um embaraço à deformação que é mais rápida entre nós; devemos reconhecer que eles são os donos das fontes, que as nossas empobrecem mais depressa e que é preciso renová-las indo a eles. A língua é um instrumento de idéias que pode e deve ter uma fixidez relativa; nesse ponto tudo precisamos empenhar para secundar o esforço e acompanhar os trabalhos dos que se consagrarem em Portugal à pureza do nosso idioma, a conservar as formas genuínas, características, lapidárias, da sua grande época... Nesse sentido nunca virá o dia em que Herculano, Garrett e os seus sucessores deixem de ter toda a vassalagem brasileira. A língua há de ficar perpetuamente pro indiviso entre nós; a literatura, essa, tem que seguir lentamente a evolução diversa dos dois países, dos dois hemisférios. A formação da Academia de Letras é a afirmação de que literária, como politicamente, somos uma nação que tem o seu destino, seu caráter distinto, e só podes ser dirigida por si mesma, desenvolvendo sua originalidade com os seus recursos próprios, só querendo, só aspirando a glória que possa vir de seu gênio.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Discurso de Posse de Guimarães Rosa na Academia Brasileira de Letras


Discurso de Posse de Guimarães Rosa na Academia Brasileira de Letras



Discurso de posse

Cordisburgo era pequenina terra sertaneja, trás montanhas, no meio de Minas Gerais. Só quase lugar, mas tão de repente bonito: lá se desencerra a Gruta do Maquiné, milmaravilha, a das Fadas; e o próprio campo, com vasqueiros cochos de sal ao gado bravo, entre gentis morros ou sob o demais de estrelas, falava-se antes: “os pastos da Vista Alegre". Santo, um "Padre Mestre", o Padre João de Santo Antônio, que recorria atarefado a região como missionário voluntário, além de trazer ao raro povo das grotas toda sorte de assistência e ajuda, esbarrou ali, para realumbrar-se e conceber o que tenha talvez sido seu único gesto desengajado, gratuito. Tomando da inspiração da paisagem a loci opportunitas, declarou-se a erguer ao Sagrado Coração de Jesus um templo naquele mistério geográfico. Fê-lo e fez-se o arraial, a que o fundador chamou "O Burgo do Coração". Só quase coração – pois onde chuva e sol e o claro do ar e o enquadro cedo revelam ser o espaço do mundo primeiro que tudo aberto ao supra-ordenado: influem, quando menos, uma noção mágica do universo.

Mas, por "Cordisburgo", igual, verve no sério-lúdico de instantes, me tratava, ele, chefe e o amigo meu, João Neves da Fontoura. - "Vamos ver o que diz Cordisburgo..." - com o riso arroucado, quente, dirigindo-se nem reto a mim, senão feito a escrutar sua presente sempre cidade natal, "no coração do Rio Grande do Sul". Provinciano - no justo traço psicológico e moral, que não no social e político - buscasse, aqueles momentos, uma reinsuflação de lá, entre o aconselhamento. Dessa Cachoeira, que o formou, que ele constante amou, a que como Prefeito prestou devotado e afincado anos de vida, refazendo-a, e pronunciando-se ainda filho devedor, dela orgulhoso; como, pensando "rio-grandensemente", diz ser o Rio Grande "orgulhosamente província". Ribeiro Couto, saudoso mais hoje conosco, e que a ponto co-adotara o hipocorístico, de Belgrado vem vez me telegrafava: "Pouso Alto se embandeira e toca os sinos em honra de Cordisburgo". João Neves, porém, nosso Embaixador e Chanceler - requerendo o interior e a província, onde firma residir ainda "a força do Brasil, especialmente nos maiores Estados", reclamando seu trato como necessário para quem aspire a exercer qualquer notória influência, imputando às metrópoles levarem "ao diletantismo, à superficialidade, ao epicurismo", e professando nada conhecer "que melhor exprima a vontade do povo em geral do que o povo municipal", - entendíamos juntos, do modo, o País entrançado e uno, nosso primordial encontro seriam resvés íntimos efeitos regionais. Para Paris, escreveu-me: "Vi uma fotografia da entrega de credenciais do Carlinhos. Nela você aparece no fundo ostentando uma gravata de listas vivas, que tanto pode ser fabricação do Sulka, como comprada no armarinho da Main Street de Cordisburgo”. Via-me lento e desacostumado mineiro capiau, indeformado, ou o-quê, segundo seu avaliar, xará e caçula companheiro no sentir de homem lá-de-fora ou lá-de-dentro; isso nos concertava. Às quandas, equivocava-se e dava-me “Barbacena" - a sagaz e espiritual, onde, em tempos diversos, ambos residíramos gratamente, e tão-então não menos um nosso "lugar geométrico". Por mim, freqüente respondia-lhe topando topônimos. - "Cachoeira concorda?" - se bem que, no comum, o chamasse de "Ministro". Escuto-o: - "E agora? Que há com Cordisburgo?"

- Muito, Ministro. Muita coisa...

De fim a fundo. Digo, conto o que de João Neves da Fontoura, por afortunada aproximação, me foi dado colher - o transordinário na experiência humana ordinária, idéia e impressão, singelo testemunho simples, do ato ao fato – na memória mais sentida. Para tanto, terei de à-pauta citar-me. Embora. No que refiro, sub-refiro-me. Não para a seus ombros aprontar minha biografia, isto é, retocar minha caricatura. Não eu, mas mim. Inábil redutor, secundarum partium, comparsa, mera pessoa de alusão, e há de haver que necessária. O espelho não porfia brilhar nem ser; mas, por de-fim, para usação, bem tem de relustrar-se. Direi.

Dele devo, por exemplo, datar o que recebi, com mãos menores. Da valia intelectual e dos rastros de cumprida vida pública - sua vasta capacidade inquieta, sua folha de batalhas, seus breves postos em poder e frementes empenhos de antagonista, seu inteiro atuar na política brasileira, tantas horas decisivo, tensa sua figura histórica - discorrem e esclarecerão, a olhos gerais, os anais, arquivos, livros, esplêndida informação autobiográfica. Esse o metal já amoedado - não permitido a alguma espécie de desaparecimento e esquecimento. Duvidemos, isto, dos que o não souberam compreender; a traça não pode com a alfazema. Tenho, sim, muito pouco, um tantésimo, um quantésimo. O que devo portar por fé.

Nem o que queria atinjo. Como redemonstrar a grandeza individual de um homem, mérito longuíssimo, sua humanidade profunda: passar do João Neves relativo ao João Neves absoluto? Sua perene lembrança - me reobriga. O afeto propõe fortes e miúdas reminiscências. Por essa mesma proximidade, tanto e muito me escapa; fino, estranho, inacabado, é sempre o destino da gente.

Vai para 40 anos; e era momento de juventude. Súbito, o povo guardava brado e gesto, um começo de começo. Foi a 5 de agosto de 1929. Aparecia para o Brasil, deste tamanho, um nome - o do destravador, servo dá palavra e de prender fogo. (João - que nem os Crisólogos, Crisóstomos, donde ouro qual tal: Fons Aurea, Fonte áuria, Fontoura; alvo - Neves - em nitidez. Davam os jornais, eco centelhar de fragmentos, sua fala na Câmara, de três horas, discurso-suma de toda uma esquipada: "... Vamos para o prélio aceso das urnas, e quiçá para o prélio sangrento das armas." Vocava "uma crença nas forças imortais do espírito de renovação." Reportava-nos os da altiva marca meridional, de rajadas, rasgos, verticalidade e ímpeto, robusta evolução cívica: ... "os rio-grandenses, que traçaram as fronteiras da Pátria a ponta de lança e pata de cavalo..." - o gaúcho de brio e cerne ao ar livre. Trazia a Paraíba, valente em entono em sonância, "até às montanhas de Minas Gerais. Minas pacífica, Minas vitoriosa!" Tomamo-lo a tento. Ele ardia. Ia, no entreassomo, mas no eito do arremesso:

"Sonhava nesta geração bastarda
Glórias. . . e liberdade!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
O gênio das pelejas parecia..."
- o de ÁLVARES DE AZEVEDO, no "Pedro Ivo". Mas, de quem, então:

"A fronte envolta em folha de loureiro
Não a escondamos, não!"

Na convibração, no momento, comportávamos, nós outros, seja ou não, sobeja exaltação e fantasia. Seduzia-nos assim entanto, imantados, o pregador, o Orador por antonomásia - que acudira das assembléias de sua terra, politizada e parlamentária, sobressaído em quanto âmbito de acústicas e toda sorte de embates, medalhado já de fulgor e forma, desde as pugnas de estudante senhor da tribuna. Vinha-se mais de ouvi-lo, frente às artes-mágicas do fatual e retendo-o daí como haraldo de um futuro em faces limpas. Seu discurso - seus discursos "liberais" - rota de obrigação - trem e incessar de lumes. Neles podia-se experimentar não apenas a comensura de facúndia e talento: mas coragem, de cor, ânimo, de alma. Tive-o, imediato, antes que outro incorporando em si o movimento que arrancava. Todo o mais adiante foi confirmação. Graças por este sóbrio meu não desacerto.

Seguiu-se, meses altibaixos, o comando do líder, causa avançadora daquelas jornadas, que tangeram o remate da Primeira República. Reconhece-se e unânime refere-se que João Neves da Fontoura - promotor da inteligência com Minas e, a todo e próprio risco e quase rituar mística significação, com Minas firmador do pacto da Aliança - susteve e alentou, inarredado, infatigável, insobrossoso, o rojão da campanha até à revolução e o triunfo. Dele foi a representação em relevo. Dele se retraiu - modo algum por machuque em melindre, frustração ressentida ou rancor de ambição, sei-quê; senão por drástico realismo conforme desconfiado desencanto, - sempre operário todavia tentando servir a uma então impossível congraça ou enquistando-se na vigilância mais lúcida. Dele não desmentiu ao conspirar a pronta reconstitucionalização de um Brasil renovado na ordem democrática - e a sustentar, verbo, o glório São Paulo de 1932, para onde arriscara-se a abrir o arco, num mixe aviãozinho de aluguel, em expediente dramático qual leal declaração de firmeza e vivo audaz como labareda metáfora. Nem o denegriu, já depois no exílio, publicando-se desabusado acusador; menos ainda, mais tarde, ao repor-se com o Governo, porquanto flui, outro-e-outro, o rio humano, certo se no álveo do árduo de propósitos, e: quem pensa no Brasil, e no povo do Brasil, vezes quantas rebeija pedras e santos. Notável esse mirável João Neves. Voltava, em 35, remanente líder, à Câmara, da Minoria, de novo facho e voz.

Esta era uma vontade, frágil alta força.

"Orador, foi dos maiores senão o maior, do nosso tempo" - consigna Afonso Arinos de MeIo Franco. Depõe: "João Neves da Fontoura... oriundo dos mais ilustres troncos sulinos... o fulgurante paladino de 1930... o mosqueteiro gaúcho... contou com um incomparável instrumento: a sua verdadeira e magnífica eloqüência. João Neves chegara dos pagos com fama de temível orador. A brilhante campanha oratória de João Neves por esse tempo, que transformou, afinal, a oposição em revolução, não encontra talvez nada superior, e pouco haverá de comparável, em toda a história parlamentar do Brasil. Quantas vezes o vi e outras tantas o admirei."

Por mim escutei-o sempre com alegria alertada. Ver era vê-lo partir a falar, sem manhas de virtuose que soberbas de ás, vezos nem rompante: cumprindo apenas correto informar o recado, propor sua pleita, dar conta. Ele, que meditava e redigia os discursos, drede botava-os sob contido arranjo, alinhando tópicos reflexivos, conceitual o pensamento, lisa correntia a linguagem, lhano o teor cogente. Lidos, pegavam logo disciplinada periodicidade e velocidade uniforme: nanja boleações, arrastos, retóricas ou vocais surpresas; por-pouco nenhum ornato. Sérias serenas as feições, também ele não se prometia em porte e aspecto; retreito de gestos, não mimava a jogo. A voz, antes desbrilhada, só insistência e volume, forjando-se hirta ou adensada se entornando, dados foscos subtons, tocava as frases num andamento ascendente quase invariado, seqüência de pontuais cortes e simétricas modulações, homofônicas.

Então. E, em instante, brusco ou gradual, baixavam-lhe outras veras, estalo, faculdade, fôlego, expediam-se-Ihe por volta anjos novos da guarda, caboclos, gênio, verbigênio, apolínica chispa, o "duende", o "daimon"? Erguia-se e erguia-nos, por comoção e impacto, raptura. Erecto - mínimo vulto, mais mente e menos matéria - maludo e esmarte agora, ao ápice e às ordens, no tinir do metal, centro de círculos até que em fecho enfim o circuito único encantatório, por efluxo também invariável -: daquela presença e intensidade anímica. Induzia, convencia; impressionava, quando não, encostando em respeito adversários, e nos sem-jeito os emparedadamente insensíveis. Isto: isto é, sabeis, o orador, o fluido e o halo. O que responde igual, mas circumpatia e nimbo espúrios, a outras dicções, que não menos sojigam e enfeitiçam - a pítica, a hipnótica, pseuda e só-Iabiosa, a elemental ou animal, mesmo a vesânica. Não a dele. Sua palavra era lavada forra do ideal sobre o contingente.

Assim aqui, assim lá, nas alienas e internacionais reuniões. Ao abrir, inesquecivelmente, a IX Interamericana, de Bogotá, por lembrar. Ou, na Conferência da Paz, em Paris, quando acorçoados o espiávamos assumir a tribuna, do mundo, convocado pelos "grandes", Bevin, Bidault, Molotov, que alternados ali presidiam: - "I call upon the Representative of Brazil, Mr. da Fontoura..." - "Je donne Ia parole au Premier Délégué du Brésil, Monsieur Da Fontoura..." - "Imiéiet slóvo Pêrvyi Brazílhskii Delegat Gospodin da Fontoura..." Ah, Ministro! Como cabe tanta coisa nos meus olhos?

Dessa oratória e eloqüência - quais o mérito e crédito, o mando, o móbil? De onde fura a fonte? Diga-se: valor. O altamente impessoal, quer dizer, o personalissimamente profundo. Da cauta, recolhida verdade do sentimento - era o que se externava - veemência ética, a sinceridade mais descoberta e em fé. Tão a fio mormente seu raciocínio, tanto mais a emoção legal certeira. Tenência. Integro, falava com uma autoridade; a de quem sabe ser vedor puro e por vezes pasmo da própria e movida grandeza. Retitude permeio e a fim, enraiz de convicção, sem regateio ou preço. Devoção à diáfana carne moral dos princípios. Mas à base então - a angústia pelo bem comum, a paixão da Pátria. Esse, dado a ver, o segredo do orador João Neves da Fontoura. Alma exercida, disse. E coração. Coração, é indispensável; todos sentimos por quê. O dever, mesmo, vem dele. Entanto que dever e pudor compelem-no a pelejar oculto.

Volto. Vai para 30 anos. Vim aqui, por causa de um prêmio, tinha de fazer discurso, cheguei tímido e cedo. Dei no saguão com grupo de acadêmicos. Deles, um, talvez não o mais próximo, endireitou para mim. ("Um acaso? Uma coincidência?" - ele é quem indaga, noutra ocasião e por diferente passo, em de seus livros: "Melhor é acreditar que uma harmonia secreta domina..." - conclui.) Encontrávamo-nos, primeira vez. Dispôs: - "Vai o poeta tomar chá conosco." Subimos, me apresentou aos pares, de mim curou todo o tempo. (Lembro-me: Adelmar Tavares, afável, glosava-me o "... nome certo para poeta..." -; guardei, tudo quanto há com nomes me apanha.) Em 29 de junho de 1937. E, a 12, ele, João Neves, tivera posse, apresentando sobre Coelho Neto estudo crítico abarcador, com achados, perdurável por substância e senso. "Assim, terçando motivo rigorosamente literário, vós - o expoente, - provais quanto merecem e têm direito, as individualidades da vossa esmerada categoria, ao convívio acadêmico, selecionador e acertado" - saúda-o Fernando Magalhães. (Expoente - e máximo - de um gênero; contudo como aspado "expoente" inajeitadamente quem-sabe se balanceasse, usando por vezes intitular modo curto a entidade: "Academia Brasileira"; e entretanto, já pois ainda antes das "MEMÓRIAS", pondo rancho arriba nas Letras do país.) E estava, eu disse, em sua doce lua com a Academia? (Mas, se sempre esteve, melenluarado e dos mais, tais querer e apreço prestava à Casa...) Me lembro - tributava jovial reverência ao mestre Antônio Austregésilo, outrora seu médico. Relembro, mais, Ataulfo, Roquette, Múcio, Alceu...? E eu enxergava o tido herói - aquém Ì nas aparências: corriqueiro, trêfego prazenteiro, leve, leviano que qual? Mais lembro! Tudo o que era, a olhos cheios, uma coisa - caseira, desusada, despercebida: bondade. O que ele endereçou, a uns e outros, natural e ágil, toda a vida. Não adamantino: barro. Mas do melhor humano. Sua real simpatia humana, ativa, principal. Ele era bom. Será que faz ainda sentido a palavra?

Semanas mais, deu-se-nos nova minúcia - senha ou casualidade?

(E ajuntemos delas, que é como a vida se faz.) Tudo o que, aliás, tutaméias peripécias, se passava nas ocasiões tão avulso, cabível sem antecedência nem conseqüência, que pôde me parecer até enganoso, fora de esquema, lapsos de improbabilidade; só no futuro iriam assentar nexo. Foi, foi que eu vinha distraído pela Avenida e sem rumor esbarrou à beira de mim um carro, alguém cordial falando-me: - "Aonde vai o poeta?" Era, claro, João Neves. Me fizeram subir - ele estava com Olegário Mariano e, por estúrdio que se tenha, jamais me acontecera convocação do jeito! - levaram-me a casa. No caminho... bem: - Você um dia será também acadêmico" - sisudo emitiu. - “Mas, mais tarde..." - retomou-se. Mesmo muito mais tarde (disto não sei se riu, do analógico) comentei: - "Na terceira vez, o sr. me içou foi a chefe de seu Gabinete..." E é episódio a contar; tanto dele revela.

Vem de mais de 20 anos. João Neves, até lá, percorrera muito, incluso nos espaços diplomáticos: membro da Delegação do Brasil à II Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores das Repúblicas Americanas, em Havana; Embaixador em Missão Especial a Cuba e ao Panamá; e Embaixador do Brasil em Portugal. Eu, de mim eu andara por Alemanha e Colômbia, e agora, na Secretaria de Estado, tomava conta do Serviço de Documentação, valha dito, em taipa no meu hipogeu. Soube, vago, que João Neves da Fontoura ia ser o Ministro das Relações Exteriores. E - vede que homem. Vai, vai, um dia, o, saudosíssimo, Embaixador OrIando Leite Ribeiro, Chefe do Departamento de Administração, Chefe meu, me mostrou (- "Sabe de quem é esta letra?") tira de papel com o meu nome. Era uma escolha, acontecia meio algébrica, despessoal, certo modo abstrata. Escutai-me.

Em dadivada página das "Memórias", das que me honram maior e comove-me, põe ele o fato - de outra margem. E: "Rosa é um dos meus mais novos amigos. (...) Quando tive de escolher o chefe do meu gabinete, no Governo Dutra, inclinei-me por ele, por força da chamada 'dupla vista'. (...) Dou muita importância às pequenas coisas; mais do que às grandes." Já em artigo, num semanário, ele publicara: "Para a chefia do gabinete convidei o então 1º Secretário João Guimarães Rosa. Não o conhecia bem, mas, num lampejo ocasional, ele me apareceu como a pessoa de que precisava junto de mim."

Então explico. Nada quase corre simples, nesses casos, depois tremeiam-se lembranças e contralembranças; e há que, se o destino quer e faz, aplica luxo de lances, ataca por linhas simultâneas - disto sei recheados exemplos. O que ele grava nas "Memórias", certo a certo, deu-se. Mas houve mais, confluência, e eis aqui João Neves reavulta. Se bem que conhecedor de funcionários à altura no Itamaraty, ele, jogando seguro, pediu a Leite Ribeiro indicações (e, com um e outro, confirmei comprovada essa conversa.) Encomendava: "alguém que, chefe de gabinete, não se ensaiasse 'eminência parda' ou 'ministrinho' arrogando-se a ministrança..." Leite Ribeiro apontou diversos. "Mas: '... e que entrasse para a chefia com atitude de espírito igual à de quem sai..." Vindo ora a mim a vez, atentai para o que João Neves por cima perguntou. - "É de que Estado?" - "Minas." - "Fico com ele!" Assim considerava a minha mátria pátria, à qual devesse também pelo sangue, por sua avó materna. A ela se reconhece unido e grato: "Visitando muitas vezes Minas, aí por volta de 1929 e 1930, e falando ao povo em comícios apaixonados, nunca deixei de meditar sobre os insondáveis juízos da Providência: eu tinha ido dez anos antes àquela bendita terra buscar um pouco de saúde. . ." Prezava não tão-só "a doçura daqueles ares de montanha"; mas própria a gente: - "Vocês, mineiros, são diferentes de todo-o-mundo..." – repetia; apreciava mesmo "as tragédias mudas da política mineira." Assaz confalasse o mote de COELHO NETO: "A terra venerável de Minas, terra de abundância e de hospitalidade, fértil e amável como o doce e generoso país quenanita... " E, pois, dela nunca poderia ser dito duvidador ou menos amigo.

Desoferecido foi que fiquei, peado quase. A um mestre achei de pedir conselho, ao Embaixador Leão Velloso, o Ministro que deixava a pasta. - "Que fazer para ser um chefe de gabinete?" Ele, coloidalmente bondoso e dono de curtida sabedoria, não à-toa vivera anos na China. Ainda assim primeiro se pasmou, um átimo. Acudiu-me, porém com fino sorriso adequado: - "Sempre trate de não chegar depois dos outros. E de mais não precisa, quem é capaz de fazer essa pergunta..." Nem tanto. Desde cedo, apenas, também eu aprendera que "o sábio fia-se menos da solércia e ciência humanas que das operações do Tao". Muito junto do braseiro, gente há às vezes que não se aquece direito, mas corre risco de sapecar a roupa. Eu gosto do amarelo. Talvez enfim nunca pudesse ter sido chefe de gabinete, de ninguém; salvante mesmo só de um João Neves da Fontoura.

Não que para preposto caçasse ele homem de capim, anódino, esmorecido; estimava ao invés a franca contestação e resistência. Disso intuí nota, ligeiro. Contava eu aprender primeiro suas querências e movimentos: assunta-se o leopardo é de dentro da jaula. Mal me deu tempo. Mandara a despacho um decreto, sem que eu o visse; o que, em si, importava nada. Apenas, esse ato - e era, menina-dos-olhos, o que criou o "Curso de Preparação à Carreira de Diplomata", uma das conquistas institucionais da administração Dutra e da gestão Neves da Fontoura - suprimia, de golpe, os concursos diretos, deixando penivelmente por baixo os candidatos do interior, dos Estados. Vim estouvado opor-me; riscou-se o quadro a corisco, feito raspar de garrotes em escaramuça. Desfechou-me: - "Alguém de Barbacena ou Cordisburgo?" - "Ou de Cachoeira, por exemplo..." - tive de repontar. - "Isso nunca acontece!" - ele revirou. "Aconteceu comigo..." - pus ponto. Digo, pontuou ele, sussurrado só, numa de suas reações rapidíssimas: - "Talvez não seja mesmo democrático..." Solilóquio peremptório. O Ministro pediu de volta o decreto, para modificação; manteve o concurso de provas, excepcional e paralelo ao Curso, inventou bolsas de recurso aos estudantes desprovidos.

Sei, nesse entestar ficamos de verdade ligados. Descobrindo também que ele era, por constância e excelência, o democrata. Creio não ter encontrado outro assim inerentemente autêntico. Ideal, espírito, sentir democrático, possuíam-no - como respirada quantidade, fundamento e arraigo, sua característica. Por aí sofria, pensava, acertava ou se enganava, persistia. Escarafunchai-lhe a vida, e verificareis. Ralavam-no a engulho quaisquer conotações de regimes superados. Chegou a mandar proceder a original escrutínio no Itamaraty, a respeito de mudança de horário. Seu conviver demonstrava, porejante, a ingente crença. A mim, a quem o conceito da soberania do povo suscitava ainda visos meu tanto teóricos, ensinou-me que ela tem outrossim carne e canseiras, tarimba e pão, consolação; mas, principalmente, certeza criadora.

E esse - revolucionário, o removedor, exemplar de cultura e humanidade, dado ao esforço progressivo e aberto a quanto de construtivo, visando permanentemente ao bem da comunidade, admitindo a coexistência honesta das ideologias - desatentou na temática da transformação social, dela se desavisou ou dessentiu-a, a grau de merecer tacha e pecha, não andou com o tempo?" "A idade que vivemos é a da cooperação niveladora" - proferiu. Repetia-me citação: "Vivemos no seio de uma grande injustiça..." Detestava toda sorte de usurpação, não toleraria o mínimo retrocesso, o rejeito de nenhuma das duras e graduais aquisições nesse plano, no qual somente não colocava a urgência como um optativo categórico. Temesse, há de ser, qualquer sôfrega dissolução do genuíno no aleatório, receava o destabocamento, caos, a má ordem. De feita, apostrofou-me: - "Você pensa que a gente vive no Céu?!" Desde menino destinado, e desde a adolescência entrado à lida partidária, e por uma carreira de seis decênios na estacada, prisioneiro de cívicos intuitos - confez-se aos despóticos valores políticos da ação em superfície, sem pausa para esfriar-se do tumulto e da força adquirida - incicatrizado investindo sempre o imediato - e portador de um alarme.

João Neves vinha à direção dos negócios sabendo o aranzel do ofício. Dominara encargos e responsabilidades de sua missão e enorme experiência diplomática, de 1943 a 1945, em Lisboa, neutra, posto crucial pelo entrejogo de meias manobras, pressões, urgidas decisões ponderosas. Comandante, agora, e por duas vezes, desestreitado e no cIuso, deu-se à faina de nossas relações internacionais: de maneira forra, lúcida, objetiva, sutil, decente e oportuna. Sei que, a pensar e realizar, ele se adiantava em toda iniciativa e dignificava qualquer rotina. Documentado está o que pôde, conservado nos rascunhos e registros. Apenas, o meu Itamaraty, mansão de equilíbrio e mourejo, fiel e febril, muito mais do que fora se crê, e também uma Casa hierárquica, timbra seus assuntos - não por cavilosidade, culpas, má-fé, senão rigor de precaução essencial, moderação co-harmonizadora e universal regra específica de estilo - pelo selo de "secretos", "confidenciais" ou "reservados". Do que ele fez, sem subservir ou omitir-se, sem falsimilhanças, me penetro. Disto não darei parte; nem serei quem deixe de deixá-lo sub rosa. Mas aqui inscrevo, como premissa honrada e sustentada, a que, a 1o de fevereiro de 1951, em discurso de posse, foi seu juramento: "Convém tornar explícito que, na condução da política externa, o Governo - acima de tudo - velará para que aos interesses fundamentais do Brasil não se sobreponham, em quaisquer circunstâncias, interesses alheios."

Reevoco-o: vejo que trabalha, trabalha, à mão-cheia entusiasmada, no retângulo-arena de seu gabinete. Solto lépido, serviçal que nem jovem secretário-de-embaixada, e a todo tempo impartível da exata dignidade, e da amenidade de irmão da gente, ingênita gentileza. Fazia conta do bem-estar e das necessidades ainda que de servidores infimífimos. Manipulador agudo do concreto, descia, prático, a sugerir meios e aconselhar-nos na execução das tarefas; e eu me envergonhava da minha entorpecedora e distanciadora precisão do absoluto, nas ocasiões em que, enrolado ele mesmo a debater tropel de assuntos, em reuniões, tomava instante para passar-me expeditivos bilhetes de auxílio, - solícito espontâneo, valedor constante, servidor de seus servidores. Difícil de quadrar-se a tolhedores métodos, aparentemente um absorvedor individualista, lia tudo, tudo capturava e examinava, produzia e orientava, sem cessar, ditava com proba avidez. Arremetia grandes olhos a qualquer problema, não enjeitando a farinha por grossa nem o angu por duro, jamais avaro de si. Nunca o vi bocejar; se estremunhava era como despertado gato. Seguro de modos trastando exercitado autodomínio, inimigo de ênfases, dramaticidade ou imponência, nem com ensombrar meio rosto se traía, ou só em quebrado de segundo, no semicerrar o cenho; quando indicado, ensurdecia-se um pouquinho mais, polidamente. Temi, vez, que, devido a raso descoincidir de índoles e vistas, estivesse-o menos socorrendo que estorvando, e o interpelei: - "Ministro, como é que o sr. me suporta?" (Nessa manhã, de seguida, espalhara eu alguns de seus projetos, tendo-me como isolador ou mau condutor contra as descargas de bateria poderosa.) Retrucou-me: - "Porque nós nos completamos... Você é a minha consciência mineira..." Por certo assim ministrava-me sua natural generosidade, propinado automático agrado de político; vede, porém, que na tirada predominava pico do sense of humour, absolutamente indispensável e uma de suas riquezas. Senhor na indubiedade, sem intricantes vacilações, destorcido era que puxava pelos mais complexos fatos; nem se furtando de abrir janela ao vento. Discorria-os a fino e gume ardor inteligente, seja sobre a tábua da justa medida e bom senso. Sabia esperar, conquanto suponho achasse que esperar é dar-se em hipoteca. Nada desandava, entretanto, nem desconchavando mesmo a quem não afeito a esse ritmo e velocidade de espírito. Inteligência que ao auge resplêndida se exercia, quando no aperreio do arrocho e já a horas de estalar, sem beirada o prazo. Dele então se inesperava: faísca, a inédita idéia, terminante, ou a útil definição, saltada acima, brasa. Ainda mais se em contenda. Parece mesmo que, para com toda a eficácia fixar-se a escogitar coisa do correr comum, primeiro carecesse ele de atribuir-lhe sentido adverso hostil, para acometida e de vencida.

"Mas meu signo era claramente o da luta" - vem descobre. Decerto. Seu era o signo do Escorpião, sob cujo influxo hoje transpiramos, campo-de-força de Marte. Scorpio reparte a seus filhos, com senso extra dos deveres e força de vontade tremenda, a pugnacidade decidida, intrepidez, gosto da rusga e da guerra. Fazem aos punhados inimigos. São políticos perigosos. O sujeito do Escorpião desfaz no risco, não alui por temor nenhum, defende-se atacando, nutre-se do conflito, dele extrai renovada substância ao contrário de despender energia nervosa, resiste até à morte. João Neves, a gente encontrava-o amofinado, perrengue, pessimista, e já se sabe: embaraçava-o a apatia dos entreatos pacíficos, atolava-se na tranqüilidade. Ele não via o sol nos belos brejos, horizontais. Depois, a gente voltava, e eis ora o homem sem achaquilhos e o acessório, são, alegre esportivamente, suas forças todas enfeixadas. Pois então, é que de novo em patriótica briga - era o realizar-se e renitir - o entrevero! Disso deixa conhecimento: "a poesia da peleja", "o sabor agradável dos embates". Define-se? "Por uma longa experiência, estou convencido de que a consciência do perigo e a certeza de vencê-lo influem uma grande paz nos espíritos atribulados." Daí mais sua filosofia, ou, melhor, Weltanschauung, resoluta cosmovisão, que era já a de Jó, de Uz. Diz: "Toda segurança é aparente, todo bem-estar terrivelmente interino." "A escolha e a luta são nossas inseparáveis companheiras." Portanto; "andava sempre, como se diz, com sete sentidos". "A vida é uma perpétua emboscada." Só que com ainda escorpiônica sensatez, mas nada de supérfluas cautelas; e humano não é sinônimo de paradoxal? Refrega durante e em avante, sim, desembuçado respeito pelo contendor. Nem o estúrdio potencial de ódio do Escorpião podia com sua não menos inata magnanimidade.

Então - e ele e Vargas? E ante Aranha? A dúvida pertine e o ponto pertence, cortando aqui desconversa, porquanto dentre bando e numeroso escol - os brasileiros grandes do Rio Grande - plano adiante inscritos na mesma moldura: tríade que em conjunto giro insólito a História nos trouxe. Impende a pergunta. Resposta, Deus sabe, só sou contador. Vínhamos, por exemplo, de visitar Oswaldo Aranha - feérico de talento, brilho, genialidade, uai, e daquele total conseguido esculpir-se em ser - e Neves pauteou: "Você estava extasiado, empolgado..." Mas vi e já advertira em que não menos cedia ele à cordial fascinação. - "Sagarana (sic sempre), cuida disto para o João..." - telefonava-me Aranha alguma vez. Prezavam-se e queriam-se, alta, gauchamente; a despeito de quaisquer despiques, queixas, rixas, unia-os a verdade da amizade. Getúlio Vargas, muito falávamos a seu respeito, compondo uma nossa tese de controvérsia. Meu interesse, sincero, pela imensa e imedida individualidade de Vargas, motivava-se também no querer achar, em sã hipótese, se era por dom congênito, ou de maneira adquirida mediante estudo e adestramento, que ele praticava o wu wei - "não-interferência", a norma da fecunda inação e repassado não-esforço de intuição - passivo agente a servir-se das excessivas forças em torno e delas recebendo tudo pois "por acréscimo". - "Enigma nenhum, apenas um fatalista de sorte..." - encurtava João Neves, experimentando fácil dissuadir-me. Mas, apto ele mesmo ao mistério, sensível às cósmicas correntes, à anima mundi antiga, teria de hesitar, de vez em quase, também a memória cobradora beliscando-o. - "De fato, o Getúlio dá estranhezas, nunca ofegou ou tiritou, nem se lastimava de frio ou calor, que nós outros todos padecíamos, nada parecia mortificá-lo..." - concedia-me, assim, pequenas observações. Logo, porém, sacudia-se daquilo. Fazia pouco de minha admiração-esimpatia por Vargas, sem com ela se agastar. Diferença fundamental de temperamentos em contraste - o ousado opugnador sem coleios e o elaborador expectante do contempo - de incerto modo inconciliava-os: por um lado insofrido espenejar-se contra visco, de outra banda quieto apartar-se de picadas. Voltas e contravoltas de longo acontecer, as vãs vicissitudes, fizeram o resto. Ou injunções de foro íntimo, públicas concepções diversas. Aproximações, afastamentos, reaproximações, como termos periódicos, patenteiam nada de outro que uma forma do "kaempfende Liebe", de afeto combatente. Demais, não se pisaram nem cuspiram nos ponchos, haveriam de entender-se, dia ou dia, em fim; já não pelo hábito caroável e em tradição cavalheiresca, mas por vinculação predeterminada e obedecida, acima de dessemelhanças ou revergências no obscuro e ambíguo das causas transitórias. Lembremo-nos sempre do que ainda não houve. Retirou-lhes a tragédia a extensão dessa substância amorfa e escolhedora - o tempo. Esta horária vida não nos deixa encerrar parágrafos, quanto mais terminar capítulos. Entanto que, como viável esteira do próprio tempo, só nos resta, a nós, cegos rastreadores, o desconjuntado flou de uma má montagem. Recordo: "As coisas estão amarradinhas é em Deus" - entimema único que punha em acordo minhas Vovó Chiquinha, de Traíras, no Rio das Velhas, e Vovó Graciana, de um povoado do Paredão do Urucuia.

Mesmo em meio de política.

Salteai-o nos tomos de crônica comentada - "Borges de Medeiros e seu Tempo" e "A Aliança Liberal e a Revolução de 1930" - em que João Neves da Fontoura nos estende texto digno de estadista sarado, de marca. Asseado depoimento, razoado a rigor de cunho positivo, nas formas da lógica; entrediz-nos entanto, quando por zelo explanador ou afã de interpretação, o titubear do autor, testemunha ou personagem, frente ao desconforme improviso dos casos e rente ao ultrapropósito de acontecimentos. Tal quer-se transparente para objetividade e acurácia - e a transparência pressupõe fundo luminoso - tão logo tem de citar os "altos juízos", os "desígnios" da Providência, seu "império", o "papel" que ela lhe distribui. Alega antecipações, não pode "desviar o pensamento de certas forças imponderáveis", reitera menção de outroversas coincidências numerológicas. Duvida enfim do plano empírico: "Sonhos ou realidade? Será que a gente vê mesmo, com exatidão, as pessoas e as coisas?" Nem estamos em Alexandria ou Ásia, mas soletrando verídico relato de um americano latino, de idéias ordenadas.

Supersticioso, sim; é claro. Superstição não preconceito, o ilusório; antes quase poesia. Percepção e arejo, defensivo psíquico automatismo, uma respiração cutânea do espírito, talvez. Soubesse que poesia é remédio contra sufocação. (Acompanhei-o, primeira sexta-feira, aos franciscanos, achávamos benigno gesto sob apaziguadoras signas de ensalmo. Não empreendia longa viagem, sem à última folga visitar igreja, mas assim mobilizava-se era para o que der e vier do agir. De outra levada, voltávamos de Petrópolis, rodamos ao outeiro de São Bento, aplicaram-nos os monges a bênção de São Brás, 3 de fevereiro, acesas as velas cruzadas, era como em remoto em meu Cordisburgo sobre o Ribeirão-da-Onça, a gente reentrava a intacta confiança e infância.) Sabe-se disto - que justo os rijos fazedores, de maneira calada ou confessada têm de ser no particular susceptíveis ao mais, captem os cantos de todos os galos. Tudo, pela metade, é verdade. Os extremos já de si sempre se tocam, antes que tese e antítese se proponham.

Mas, esse tom intuicional, aquela atmosfera passada de eflúvios, compertencem ao que se espera de currículo descrito por homem público? Talvez não; tanto nuamente são mesmo é da vida.

Salvo dissermos ainda do individido discernis entre obrigação e vocação, tendência e necessidade. João Neves foi político por encaminhamento, determinismo ambiente, renovados ditames; não por vício. Melhor, por recorrente ecologia pessoal como inevitável campo de ação, a metade estática do fadário - seu dharma. Estou-lhe no eco: afirma que em política sempre caminhou e subiu dando as costas aos mais entretidos desejos, até mesmo aos propósitos mais fincados. Dela diz ter sido, "talvez hereditariamente", sua "fatalidade". Vê, nela litigando, a imposta relatividade que a macula - bem em intenção, mal necessário. Aí dá-se outra medida de sua nobreza e rareza. De fato.

Surpreendi-o, amiúde, no vivo. Uma vez, por exemplo, descansávamos, especulando disso e daquilo, chegou-se a confronto entre o político e o artista. Precipitei-me a grado de argumentos e exercício. Neves, repartido absorto, externou-se então em frases muito planas, não dissertava, recordava. Falou das obras que pudera promover na Cachoeira, de tanto que no Brasil precisava de urgente ser feito, imaginava humildes enormes realizações. De ato, entendi. O que ele pretendia e perseguia era a política substantiva, seu discreto cívico exercício e trabalhosa consecução, sacrifícios pelo cabedal coletivo, a concreta causa do povo: culto aprendido, desde quando contemplava famoso manifesto de Júlio de Castilhos, impresso em cetim branco, num quadro no escritório do Pai - que ele acompanhava, a cavalo, em suas idas de Chefe local do município. Colocava-a alta, mas na escala dos deveres, sem refugar nem reter seus aspectos subalternos.

Provável porém daí também decorram as constantes negativas que o embaraçaram na falácia das situações vitoriosas: um sobrevir de empecilhos "between the cup and the lips", entre a colher e a boca perdendo-se a sopa, e o obstinado opor-se da perfídia imanente às coisas, "die Tuecke des Objekts". Cabia-lhe, nas campanhas, "receber os primeiros e os últimos golpes", entanto que, "na hora das honrarias e dos postos", sofrer as "injustiças e preterições" - diz.

Tenho que o onerasse o handicap de excessiva sensibilidade, com a mobilidade, mercurial, conseqüente; mais alguma incontida impaciência de idealista. Faltavam-lhe, além da gana irracional que em vontade-de-poder se revela, blindagens grossas, densidade epidérmica, o quanto de macicez para o desempenho do calibanato. Da sensibilidade e inteligência tem-se sempre de pagar ingrato preço.

Por contra, que formidável campeador, quando na oposição, aquelas mesmas aparentes limitações o faziam, com destaque dado e conquistado! O que se pensava dispersivo, plástico e fragmentário, resolvia-se em flexibilidade presta, multiplicados meios e órgãos de movimento e ataque. A fartura de antenas sensitivas provia-o de incomparável tino, quase adivinhador. Funcionavam-lhe engenhadas as imaginosas aspirações, vezesmente, sem relaxe; tanto quanto jogando-o ao arranque de superação a própria experiência de reveses. Tremendo, ei-lo, contendor duro, conspirador sério, conferindo força de persuasão e evidência convincente, inchante fermento; pequeno polegar, malasarte, malino não maligno nem maquiavelhaco, mutuca - como Sócrates de si mesmo na "Apologia" diz-se "a mutuca de Atenas" - ou melhor na pressa não reta das abelhas em vôo, à mão-de-deus-padre de táticas inseguras e certeiros desatinos, fogo em todas as frentes, não lhe importando perda de chumbo ou pólvora. Espetáculo! Franzino a performar seus trabalhos-de-hércules. E, aqui, estamos no vértice do incontestável. Contai-os.

Revede, a etapas, o que dele guarda lasca e garra, e dívida à eficácia de sua impulsão sustentada exata, à ponta extrema. Recitem-se, 29/30, Aliança e Revolução; 32 a Epopéia da gente Paulista, que remeteu inadiável em prumo o Brasil; a vitória, 1945, da candidatura Dutra, por ele alevantada (e recusara filar em mãos a sua, própria, com manilha e trunfo, posta por Vargas); a campanha mesma pró-Vargas, 1950. Mas meramente marcos de geodésica, ou, devo, digo, rebojos que mexem à flor de correnteza estrênua. Drede detendo-me de algum juízo entre o quer-que de homólogo ou díspar, aí, eventos e causas. Quem julga? Apreendeu já alguém, sobre o fluxo dos fenômenos e dar-se de valores instantâneos, a ortografia das tortas linhas altas? Seja sim obediente então a intenção - em que quanta composta coisa se insere, coalesce e coere. Teste-se, no mais severo balanço, sem encarecimento, de João Neves da Fontoura: não um bélico tumultueiro, lansquenete, buscador de vantagens ou construtor de revanches. Só o servidor enxuto. Sete-capotes, rompe-gibão, tranca-porteiras, angico-branco, ouricuri que a queimada lambe e poupa, quebra-machado, tamboril-bravo. Até ao final, montou guarda.

Mas, política, tempo e modo, mudavam em antes não visto acelerar-se, ultrapassante, enquanto que a idade pegava-o já com meio frias meias mãos; tanto o viver vai maior e mais ligeiro que a gente. - "A vida é uma série crescente de restrições" - falava-me. Rejeitara ainda ser Ministro do Exterior do Governo Kubitschek. Na lonjura as trépitas festas de orador - e a diminuição auditiva (dizia-se ele um "hipoacúsico") toda maneira tolher-lhe-ia a tribuna polêmica. Embora, à altura, procurado sempre para opinião e conselho, irradiador, prezada mais sua presença condutora. Então entrou à imprensa que nem a outra paliçada. Formou de jornalista, dos pontualmente mais atuantes, em artigos e editoriais, coraçonados, escorridos, acertantes, de destopeteada bravura. Das coleções de O Globo, por mencionar, estariam de desentranhar-se, desses, volume e volume.

E envelhecia bem; isto é, tomava posse do passado. O passado também é urgente. Abriu-o em todas as páginas. Escreveu as "MEMÓRIAS". Narração e demonstração. O lutador conta - descreve as passagens de próprias guerras, fama devida... - perfila-se. Máxime. Não era homem de não prosseguir, ao sol-entrar, quando a lembrança cria exemplo. Fez grande, importante livro. Tirando-o de cadernos, maços de documentos, tanto quanto do tutano da memória, mesma, objetiva e afetiva, recuo montante. Mais de sua arte de rever e aviventar, forte honestíssima. Fiel às amizades e às inimizades; leal, acima, à verdade, perceba-se. Ivan Lins refere como João Neves fiou-lhe a ler os originais e tomou em rigorosa atenção todas as retificações; procedeu também assim com outros, igualmente íntegros e fidedignos. Quis ser justo, daí o escrúpulo e cuidados para com os fatos. Vereis que pôde falar, em desaparato, do muito que foi, "a contragosto, e o imenso que não quis ser". Seu ethos - o da era, que começa, dos comportamentos a descoberto - é o roteiro esforçado da fé e a dinâmica da humildade. A de homem culto: o que sabe pensar. Por outra parte, são as "Memórias" livro de que se honrará a nossa cultura. Relede-lo. Jamais enfara; cativa e gratifica, a cada volta; com ele se convive. Tudo põe e repõe, desenredado, simplificado, pormiudamente humano, com tacto e lisura, tanto bastante. João Neves nele confessa-se, espontâneo e discreto, desimpedido e comedido, como um recibo de entendimento, como o clamor de um cochicho. Vem franquear, a quantos, um fundo de consciência, o centro de sua personalidade. Ele mesmo - transretratado. Direi, escreveu-o para o Juízo Final, como todo livro deveria ser escrito.

Seu fervor literário, aliás, se extravasava sempre. Lido, lia em dia, fazendo das leituras a um tempo húmus para a mente e estímulo às idéias que povoavam-lhe aqueles retidos "territórios íntimos". Dividia-os, entanto, prazeroso pleno conversador, nos entremeios da ação, lembro-o de novo: quaisquer vezes, quando a gente corria - "Allons-y!" - estradas de Flandres e Holanda, ou passeando sós longo-praias de Ipanema e Leblon, ou tomando chá à beira do Marne, qual se sob sombra de um plátano à borda do Ilissos, quer debaixo de caraíba ou umbu, vendo a covilha ou a chapada.

Nem esqueço, em Bogotá, quando a multidão, mó milhares, estourou nas ruas sua alucinação, tanto o medonho esbregue de uma boiada brava. Saqueava-se, incendiava-se, matava-se etc. Três dias, sem policiamento, sem restos de segurança, o Governo mesmo encantoado em palácio. Éramos, bloqueados em vivenda num bairro aristocrático, cinco brasileiros, e penso que nem um revólver. Recorro a notas: "12.IV.48 - 22 hs. 55'. Tiros. Apagamos a luz." Mas, o que, com João Neves, por sua calma instigação, então discorríamos, a rodo, eram matérias paregóricas: paleontologia, filosofia, literatura; ou lembrava tropelias brilhantes de seu Sul, citava o saudoso nosso Dr. Glicério Alves, nobre tipo humano, do melhor gaúcho e amigo. E, todavia foi sua determinada e ativa decisão um dos ponderáveis motivos por que a IX Conferência se manteve na capital andina, adiante e a cabo.

Sua contenção derivava do bom gosto, essa forma ameníssima de renúncia; imolava-se, diário diuturno, com naturalidade. Daí a gentileza de espírito e elegância de maneiras - econômico de corpo mas nãonadamente mesquinho, petulante ou cosquilhoso - jamais vulgar nem em desclasse. E a permanente galanteria: portava-se com sua netinha Fátima como se perante uma lady ou um flirte. E no neto Joãozinho já visse futuro o adulto, seu continuador em renome, renhir, responsabilidades. Sob o afoito combativo, a gente acertava mais, sempre, a tranqüila sabedoria do medimento: sophrosyne. Não punha contra si em movimento os mecanismos da Nêmesis. Era quase como um menino que ele pedia alguma coisa à vida. Compreensivo, notava-se pela benevolência e de-sobra tolerância - "Ninguém muda ninguém..." - não julgava. Usava e dava a esperança. Imortal é o que é do sofrido e espírito; tudo, abaixo daí, é póstumo. As coisas que ele me disse não se afastam com o tempo.

E expande-se: "... cada alma vai sentindo, na descida do caminho, a ânsia de se devotar a deveres mais altos do que as paixões públicas." Tem-se então, imediato, avançando dos grandes fundos, outra extraordinária personalidade, Arthur da Silva Bernardes, que faleceu súbito, em meio à lida lúcida, mas deixando, como por toque de preconhecimento, num derradeiro bilhete: "O fim do homem é Deus, para o qual devemos, preferentemente, viver. Eu, porém, vivi mais para a Pátria, esquecendo-me d'Ele" - pedindo ainda aos amigos, correligionários, e aos de boa-vontade, que com orações o ajudassem a resgatar aquela falta.

João Neves, tão perto o termo, comentávamos, suas filhas e eu, temas desses, de realidade e transcendência; porque agradava-lhe escutar, ainda que não tomando parte. Até que falou: - "A vida .é inimiga da fé..." - apenas; ei-Io, ladeira pós ladeira, sem querer fim de estrada. Descobrisse, como Plotino, que "a ação é um enfraquecimento da contemplação"; e assim Camus, que "viver é o contrário de amar." Não que a fé seja inimiga da vida. Mas, o que o homem é, depois de tudo, é a soma das vezes em que pôde dominar, em si mesmo, a natureza. Sobre o incompleto feitio que a existência lhe impôs, a forma que ele tentou dar ao próprio e dorido rascunho.

Talvez, também, o recado melhor, dele ouvi, quase in extremis: - "Gosto de você mais pelo que você é, do que pelo que você fez por mim..." Posso calá-lo? Não, porque sincero sei: exata estaria, sim, a recíproca, tanto a ele eu tivesse dito. E porque deve ser esta a comprovação certa de toda verdadeira amizade - impreterida a justiça, na medida afetuosa. Acredito. Nem creio destoante ou mal assentado, numa solene inauguração de acadêmico, sem nota de despondência, algum conteúdo de testamento. Giremos a perspectiva.

Ainda talvez mais que eu, ele vos agradeceria minha presença aqui, aonde desejei vir – para o ver "claro e quieto" que Machado de Assis inculca. Só não cismando, há-de-o, que em sua mesma vereda, a subseguir, orgulhoso e transido, o elenco destes que ganharam vida difícil, trabalharam sem repouso e hora por hora renderam-se à intimação interna - escolha ou chamado. Eles, Neves da Fontoura, Álvares de Azevedo, o que morreu moço, poento de poesia. Coelho Neto, amoroso pastor da turbamulta das palavras. Tenho-os comigo. Pois não descendemos dos mortos?

Deferidos, entretanto, à simpatia dos vivos. Vós. Demais que vindo-me o bom modo de vosso agasalho pela palavra de um a mim bem próximo, admirado e querido, malungo, autorizado. Afonso Arinos de MeIo Franco -: capaz para pretender-se "mineiro, totalmente", por estirpe e por espécie, "das Gerais e dos Gerais"; idôneo de declarar que tudo o que sente de mais espontâneo e natural no seu espírito "tende a considerar intelectualmente e mesmo literariamente a vida"; autor de A Alma do Tempo, que fundo releio, para alongamento e consolo, um dos livros maiores do pensar e sentir brasileiros; originário dessa Paracatu - grande e memoriosa entre chapadões sertões -, e cuja estranha notícia, trazida por vaqueiros, boiadeiros, tropeiros, desde a meninice enriquecia-me a imaginação, qual outrotanta maravilhosa Tombuctu, a depois do Saara, sobrenomeada "a Rainha das Areias". Dele temo e alegra-me ouvir afirmações de doador muito entusiasmado; já que arriscado e conturbante é a gente se tirar das solidões fortificadas. Trar-me-á, igual, simbólico, vosso primeiro abraço, o escritor sem falsas e amigo sem falha: Josué Montello. Cumulo-me.

Nem agüentaria dobrar mais momentos, nesta festa aniversária - dele, a octogésima, que seria hoje, no plano terreno. Tanto tempo a esperei, e fiz que esperásseis. Relevai-me.

Foi há mais de quatro anos, a recém. Vésper luzindo, ele cumprira. De repente, morreu: que é quando um homem vem inteiro pronto de suas próprias profundezas. Morreu, com modéstia. Se passou para o lado claro, fora e acima de suave ramerrão e terríveis balbúrdias.

Mas - o que é um pormenor de ausência. Faz diferença? “Choras os que não devias chorar. O homem desperto nem pelos mortos nem pelos vivos se enluta" - Krishna instrui Arjuna, no Bhágavad Gita. A gente morre é para provar que viveu. Só o epitáfio é fórmula lapidar. Elogio que vale, em si, perfeito único, sumário: JOÃO NEVES DA FONTOURA.

Alegremo-nos, suspensas ingentes lâmpadas. E: "Sobe a luz sobre o justo e dá-se ao teso coração alegria!" - desfere então o salmo. As pessoas não morrem, ficam encantadas.

Soprem-se as oitenta velinhas.

Mais eu murmure e diga, ante macios morros e fortes gerais estrelas, verde o mugibundo buriti, buriti, e a sempre-viva-dos-gerais que miúdo viça e enfeita: O mundo é mágico.

- Ministro, está aqui CORDISBURGO.