sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

PRECIOSAS OPINIÕES




SOBRE O "TEATRO AMAZONAS"
Recebi teu livro sobre a construção do Teatro do Amazonas.Maravilhosos os passos em volta da Floresta Amazonica que mistura seu aroma selvagem com o trabalho da construção do Teatro. Um Teatro de Opera, no centro da cidade de um Estado, é o Despontar da Arte Clássica em meio ao neo-barroco do recém nascido Amazonas (Clarisse de Oliveira). -


ALGUMAS OPINIÕES SOBRE Rogel Samuel:
Rogel! Fiquei tão impressionada com o livro e maravilhada porque era muito além do que eu imaginava, que li ontem e ontem mesmo acabei. Sempre que me agrada sou assim, por mais longo que seja, não consigo parar. Mas quando isso acontece, percebo de imediato que é o autor que prende. Sei que tinha e tenho interesse pelo nosso Amazonas, mas você escreve bem demais, Consegue passar imagens à leitura. Vou colocar no meu perfil, como livro preferido , e já influenciei muitas pessoas. Isto só aconteceu comigo duas vezes, quando li O Ventre de Carlos Heitor Cony e o seu.
MUITO OBRIGADA! (MIRZE SOUZA)

"Poucas vezes li um texto tão bem condensado sobre teoria literária. Felicito-o pela plena realização, coisa rara no gênero" (NELSON WERNECK SODRÉ). «O meu abraço de parabéns pelo muito que aprendi com você. O estudo sobre o Rosa é mais do que excelente - é perfeito. Um grande abraço deste seu velho admirador e amigo». (JOSUÉ MONTELLO) «Hoje trocamos de lugar, você na cátedra, eu na assistência.» (ALCEU AMOROSO LIMA)"É uma obra-prima" (ELIANA BUENO-RIBEIRO) "são raros os romances históricos sobre temas brasileiros, e a visão de Rogel Samuel é primorosa" (LEILA MÍCCOLIS) “Escreveu o quadro de uma época( 1897) com muito vigor e beleza, significativamente com densas impressões (DALMA NASCIMENTO).

maria azenha disse:
Querido Rogel,

“ Fios de Luz, aromas vivos”, uma sua leitura magistral . Nos entrega uma chave que abre mil poemas dentro de cada poema . portas que se abrem continuamente.Infinitos dentro de infinitos, auroras que fazem o quê diante da morte?
Sinto-me pequena criança a descobrir nos mil espelhos a voz que sempre chama .
Como refere , através de Cage: “ Poesia é não ter nada a dizer e dizer: não possuímos nada”.
Ao lê-lo , durante a noite, fui registando alguns aromas que as suas palavras e os poemas de “ Retrato de Mãe” de Jorge Tufic me trouxeram:
Lembro-me destes que se cruzaram,
Estava na primavera.
E a morte era um sonho em branco.
Neste “ Retrato de mãe” as suas reflexões remeteram-me para as Matrioshkas, umas dentro de outras, em que a última é a única que não é oca. “ …a alma sai inteira, como quem abre a luz da primavera.”, disse-o.
Vou voltar a este livro com mil livros dentro, sempre que a Voz me chamar.
Estou maravilhada.
Abraço grande,
maria azenha
SOBRE "FIOS DE LUZ"
"Já comecei a ler e estou achando o livro o máximo: sua análise é tão bela e poética quanto os poemas do Tufic (LEILA MICCOLIS) - "Fios de luz, aromas vivos", constituido por 15 sonetos pós-modernos de autoria do excepcional poeta Jorge Tufic, com um tema que sempre desperta muito amor e,com a competente análise, comentários e interpretação de um virtuoso mestre como você, - o livro é uma joia. Parabéns". (Ursulita Alfaia) - "Estou lendo Fios de luz, admirando a beleza, a sutileza e a atenção com que ouve e compreende o belo poema de Tufic" (Jefferson Bessa) "Querido Rogel, sua leitura dos sonetos de Tufic é pura poesia. Estou encantada com "Fios de luz"!Muito obrigada por me brindar com o livro e sua linda dedicatória.(MARCIA SANCHEZ LUZ) - "Retrato de Mãe" , poemas de Jorge Tufic que Rogel vai cautelosamente desvendando em sua análise. Como um mestre de cerimônias, convida-nos a passear pelos quinze sonetos. Pleno de ensinamentos e toques bibliográficos que nos levam à reflexão sobre caminhos da “teoria literária” ao longo dos anos. Assim, o livro “Fios de luz, aromas vivos...” trouxe para mim momento de compreensão maior sobre a delicadeza e a força do texto poético sob a ótica de Rogel Samuel. Muito obrigada por esse presente. (Bernardina de Oliveira) - Magnífica a sua intrepretação de Retrato de Mãe, de Jorge Tufic.Você fez um ensaio filosófico no livro Fios de Luz, Aromas Vivos:A sua análise é algo extraordinário, simplesmente diáfano e iluminado.O logos e o diálogo estão presentes na sua exata dimensão, na dimensãoda pólis, enfim, na organização imaginária do ser humano, do filho que nãoesquece nunca de sua querida e amada Mãe. Sempre lembrada.Parabéns! (Clark Varajão) Não posso deixar de comentar minha emoção ao término da leitura do poema e de sua análise, Rogel! O poema deve ter sido escrito com alguma artéria do coração que se fez pena para que ele convertesse um soneto tão próximo ao amor que se diz ser sentido pelo coração. Chorei muito, e nunca li nada tão emocionante que fluía a cada verso como se fosse música. A recordação da viagem, no XII , lembranças que em minha mente se misturaram à uma viagem que fazia sua mãe, pata depois (?) talvez ter um novo encontro. O Líbano e toda refeição descrita com tanto carinho que hortelãzinhas , podia ser sentida no olfato e na alegria dos encontros às refeições.
FIQUEI EXTASIADA!Complemento com a maravilhosa análise feita por você, com tanta sabedoria, revelando um professor, um mestre na literatura.Parabéns, amigo. Você é GRANDE!Beijos
Mirze ALBUQUERQUE.

sábado, 18 de janeiro de 2014

NEUZA MACHADO - ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO

NEUZA MACHADO - ESPLENDOR E DECADÊNCIA DO IMPÉRIO AMAZÔNICO

 
 
 

A Narrativa e os Personagens

 
No princípio, o texto imita os autores amazonenses do auge da época da borracha, que eram imitadores de Euclides da Cunha.[i]
 
            Para o critério de um resultado considerável de meu pensar reflexivo, sobre o romance O Amante das Amazonas, de Rogel Samuel, o préstimo da Entrevista do autor à jornalista Tânia Gabrielli-Pohlmann aparecerá, aqui, como registro às minhas induções analítico-fenomenológicas sobre sua diferenciada criatividade ficcional. Por este auxílio do próprio escritor, entendo os desempenhos dos dois narradores deste relato ficcional, sobre o esplendor e decadência do Império Amazônico, como autênticas rubricas pós-modernas/pós-modernistas de Segunda Geração. Verifico, outrossim, por meio de uma reflexão teórico-crítica abrangente, que o Ribamar-Narrador poderá ser avaliado como alter ego do escritor comprometido com suas leituras diárias, e, ao mesmo tempo, propenso a impregnar-se criativamente das mesmas, transformando-as em fontes de produção literária ficcional.
Diz Rogel que, no princípio, o seu texto buscou imitar os autores amazonenses do auge da época da borracha, que eram também imitadores de Euclides da Cunha. O fato é que o escritor de Os Sertões, aquele que tanto se impressionou com os problemas do sertanejo, principalmente os habitantes do Alto Sertão (os realmente “fortes”), em confronto com os “enfraquecidos” sertanejos da caatinga (os próximos, do “brejo”, onde, à época, desnutridos, a seca os exterminava com maior facilidade), ao visitar a região amazonense, e ao escrever sobre a mesma, impressionou-se teluricamente (atentar para a etimologia da palavra), legando aos historiadores (e apreciadores de impecáveis estilos literários) sensibilíssimas páginas de puro encantamento, mas não logrou traduzir em palavras plurissignificativas ─ criativas ─ aquilo que entendo por verdadeira arte literária (fosse no âmbito da miséria humana, que grassava no Amazonas do princípio do século XX, ou da beleza estonteante de um lugar reconhecidamente de pura maravilha e incríveis singularidades). Euclides da Cunha, diferente de sua atuação como criador ímpar em Os Sertões, em seus textos sobre o Amazonas, ao ocupar-se das virtudes e/ou os problemas daquela região, não alcançou (pelo meu ponto de vista), no âmbito da criação literária, suas peculiaridades riquíssimas, atuando, por outro lado, como repórter impressionista, a observar tensamente, mas por uma ótica sintagmática, as inúmeras mazelas que assolavam aquele “paraíso” já maculado por exigências capitalistas (o que poderia ser um dado singular no espaço da criatividade paradigmática), excluindo assim a possibilidade de recriar o ambiente da Floresta artisticamente e de obter o ensejo de transformar aqueles textos (reconhecidamente de impecáveis qualidades discursivas, no entanto, lineares) em algo “incômodo” (incomum criação literária) para os leitores de sua época e para os leitores do futuro.
Euclides da Cunha colocou o Amazonas à margem da história pois se encontrava submisso à idéia de que a região estava separada dos ideais políticos do Novo Mundo Americano, desde a conquista colonial dos espanhóis ao norte da América do Sul (século XVI) e, posteriormente, século XVII, de 1580 a 1640, quando os reis espanhóis se apropriaram do trono português e da Colônia do Brasil. A verdade é que o anterior pensamento euclidiano permaneceu incólume até aos anos finais do século XX, porque a região amazônica resistiu aos liames da colonização espanhola nos países fronteiriços, à época colonial, e, posteriormente, à colonização portuguesa da Terceira Dinastia Orleans e Bragança, após à regeneração. Até meados do século XIX não se tornaram notórios, naquelas paragens do Estado do Amazonas e Acre, mais próximas da fronteira com Peru e Bolívia, os conhecidos, historicamente falando, assentamentos comerciais dos colonizadores. Esta constatação evidencia a sobredita “marginalidade” constatada por Euclides da Cunha nos anos iniciais do século XX. O que Euclides percebeu e comprovou, em seu escrito documental sobre a região amazônica, próxima às fronteiras de domínio espanhol, é que a “marginalidade” do território, apesar dos aventureiros que ali se estabeleceram desde o início da colonização, principalmente os não-portugueses ou pouquíssimos portugueses, se encontrava politicamente aquém do desenvolvimento colonial das outras regiões do Brasil.
Por este ângulo, percebo o Manixi rogeliano, originário do final do século XIX, um Manixi governado por um ditador sui generis de origem francesa. Enquanto os espanhóis, primeiramente, e portugueses, posteriormente, colocaram a região distanciada dos valores aproximados das antigas regras coloniais, transformando-a numa espécie de local periférico, um lugar desconhecido, onde poucos aventureiros ousavam explorar, lá pelos idos do século XVIII e início do XIX, aventureiros de outras nacionalidades por ali aportaram, submetendo alguma etnias indígenas e os caboclos ao seus domínios. Na verdade, os colonizadores (espanhóis e portugueses) possuíam extensões de terras brasileiras menos problemáticas para a colonização e, por isto, não persistiram na busca exploratória, devido às dificuldades de locomoção, às doenças tropicais, aos ataques dos indígenas, aos ataques dos animais ferozes da Floresta, e muitos outros empecilhos. Tais embaraços não perturbavam os aventureiros de outros reinos europeus, em seus anseios de domínio e enriquecimento de livre comércio. Sobre esse itinerário dificultoso, o narrador-personagem de Rogel Samuel, o Ribamar de Sousa, iniciando a sua viagem ficcional em 1897, oferece-me informações estimáveis:
 
Porém embarcado chegaria em Manaus sem tropeços depois de 6 dias de viagem a 8 milhas por hora. E 2 dias mais tarde passava pela Boca do Purus, 5 dias após entrava na Foz do Juruá. Não navegávamos dia e noite? Na Foz do Juruá o Rio Solimões mede 12 km de largura e pássaros de vôo curto (o jacamim, o mutum, o cojubim) não conseguem atravessar, morrendo cansados afogados no fundo de ondas pinceladas de amarelo da travessia. Em 8 dias de navegação pelo Juruá chegávamos no Rio Tarauacá e atracávamos em São Felipe, de 45 casas, vila bonita, e arrumada. 9 dias depois entrávamos no Rio Jordão, de onde não prosseguiu o Barão, que não tinha calado, a gente seguindo desse modo de canoa pelo Igarapé Bom Jardim, subindo pois e encontrando nosso termo e destino, a ponta do nosso nó, o término, o marco extremo de nós mesmos, o mais longínquo e interno lugar do orbe terrestre ─ atingíamos finalmente o Igarapé do Inferno, limite do fim do mundo onde se encontrava, e envolto no peso de sua surpresa e fama, o lendário, o mítico, o infinito Seringal Manixi ─ 40 dias depois de minha partida de Belém, 3 meses e 5 dias desde a minha partida de Patos.[ii]
 
Mas não disse que vinha à procura de Tio Genaro e meu irmão Antônio, aviados no Manixi. Não. Pois eles tinham sido trabalhadores seringueiros do Rio Jantiatuba, no Seringal Pixuna, a 1.270 milhas da cidade de Manaus, onde anos depois naufragaria o Alfredo. Eles freqüentaram o Rio Eiru, numa volta quase em sacado, e dali partiram em chata, barco e igarité até ao Rio Gregório, onde trabalharam para os franceses, e de lá partiram para o Rio Um, para o Paraná da Arrependida, aviados livres que eram, subindo o Tarauacá até o ponto onde dizem foi morto o filho de Euclides da Cunha, que delegado era, numa sublevação de seringueiros. Depois viajaram. E foram para o Riozinho do Leonel, seguiram para o Tejo, pelo Breu, pelo belo Igarapé Corumbam – o magnífico! –, pelo Hudson, pelo Paraná Pixuna, o Moa, o Juruá-mirim até o Paraná Ouro Preto onde, pelo Paraná das Minas entraram pelo Amônea, chegando ao Paraná dos Numas, perto do Paraná São João e de um furo sem nome que vai dar num lugar desconhecido.[iii]
 
Os aventureiros europeus, como os franceses e alemães, à época, por não se acharem os “donos” da Colônia, penetraram naquele templo de pureza mítica, conhecido como Floresta Amazônica, com a intenção evidente de apropriação do local. O fato era que os colonizadores espanhóis e/ou portugueses, cada um em seu tempo histórico, estavam mais preocupados com a costa brasileira, alvo de vários ataques de navios piratas (ingleses, holandeses, franceses), do que propriamente, por motivos óbvios, com a região amazônica da fronteira latino-americana: julgavam que terras tão inóspitas não iriam merecer a atenção dos aventureiros de outros reinos de Além-Mar. Por este aspecto, retomando as minhas inferências sobre o Manixi ficcional rogeliano, a partir do reconhecimento histórico de uma região sem igual, além de repensar a presença do personagem francês Pierre Bataillon, como chefe importante da região, medito sobre a presença missionária dos padres católicos alemães, na figura do personagem Frei Lothar, objetivando catequizar os indígenas e mestiços, mas sofrendo os males da expatriação, afundando-se no desmazelo corporal e no vício da bebida, e, conseqüentemente, na desilusão espiritual.
O valor histórico dos textos de Euclides é inestimável. Os textos, sobre a realidade amazonense do início do século XX, são bem elaborados (não há como contestar a capacidade discursiva do escritor), há ali a marca dos que sabem escrever e transmitir pensamentos e conhecimentos em forma de narrativa, mas, reafirmo, não há o “desconforto” verticalizante do texto artístico (a possibilidade de o leitor interagir com os cogitos superiores do escritor). Por exemplo, a Ilha de Marapatá, para Euclides, é o “mais original dos lazaretos ─ um lazareto de almas! Ali, dizem, o recém-vindo deixa a consciência...”[iv]. Esta horizontal informação de Euclides não atinge o cogito reflexivo do leitor, em outras palavras, não promove a “eternização” literária do lugar, mesmo que demonstre textualmente que a Ilha de Marapatá é o espaço da angustiante solidão. No entanto, o Pós-Moderno/Modernista de Primeira Geração Mário de Andrade recebeu a informação, com certeza por via euclidiana, avaliou-a, e soube transformá-la em ficção-arte. Com sua capacidade de interagir criativamente com as palavras, Mário de Andrade obsequiou os leitores de seu presente histórico (e os do futuro) com uma lendária Ilha de Marapatá, onde seu personagem Macunaíma havia deixado a consciência ao sair para o espaço universal.


[i] Trecho retirado da Entrevista de Rogel Samuel à jornalista Tânia Gabrielli-Pohlmann.
[ii] Idem: 11 - 12.
[iii] Idem: 12.
[iv] CUNHA, Euclides. “Terra sem História: Amazônia”. À Margem da História. São Paulo: Martin Claret, 2006: 28.

A ausência de Neuza Machado


 A ausência de Neuza Machado

Cunha e Silva Filho


Conheci Neuza Machado quando, de 1999 a 2006, fui lecionar no curso de Letras da Universidade Castelo Branco, em Realengo, Rio de Janeiro. Não me lembro bem como foi o meu primeiro contato com ela. Só sei que, de repente, já éramos bons colegas no ambiente universitário. Ela lecionava teoria literária; eu, literatura brasileira e, depois, língua inglesa, cheguei mesmo a lecionar também, e por um semestre, literatura americana.
Me lembro bem de que, uma noite, após uma reunião geral com o reitor, saí do auditório e fui para a cantina, lugar de encontro de professores e alunos e lá Neusa me perguntou se eu tinha alguma facilidade de conseguir um editor para um livro dela pronto a ser publicado. Por um ou outro motivo, ela pensava que eu tivesse assim bons contatos, o que não era o meu caso. Ficamos amigos e dessa amizade que cresceu mais com as muitas vezes que, no Centro do Rio, por mera coincidia,  nos encontramos  tomando o  mesmo ônibus para Realengo.
Foi nessas vezes que comecei a conhecê-la melhor. Nessas idas de ônibus, cujo percurso durava uma hora ou mais, dependendo do trânsito, e em ônibus lotado, aproveitávamos para falar principalmente de literatura, de escritores, dos tempos de graduação na Faculdade de Letras da UFRJ, dos bons professores e das dificuldades inerentes aos tempos de estudante.  Assim,  ia formando minha opinião sobre esta colega que não chegou a ser amiga íntima, mas cujo convívio profissional no mesmo ambiente de trabalho foi suficiente para que sentisse admiração pela sua formação intelectual e seus anseios de estudiosa e pesquisadora sobretudo na sua área de maior interesse, a teoria literária.
Neuza era mineira e tinha muito do que se fala de bem dos mineiros.Por outro lado, a sua personalidade simpática e brincalhona por vezes escondia algo de um temperamento muito crítico e rigoroso com o que fazia na sua vida profissional. Sua visão do fenômeno literário era penetrante, muito seletiva, numa abordagem metodológica que se orientava pela análise semiológica, por ela declaradamente haurida da experiência que teve nas aulas de Anazildo Vasconcelos da Silva, professor da Faculdade de Letras da UFRJ. Na sua dissertação de Mestrado, O narrador toma a vez (Rio de Janeiro: N. Machado,  2006,  120 p.) em que discute o conto “A hora e a vez de Augusto Matraga”, de Guimarães Rosa, depois editada por conta própria, em 2006, Neuza deixa bem nítida essa inclinação às aproximações semiológicas (Greimas, Barthes, Anazildo Vasconcelos da Silva e outros) e sociológicas (Goldaman, Luckács, Weber e outros) do fenômeno literário. Percebe-se que neste estudo ela mobilizava um instrumental teórico diversificado, pluralista, no qual não havia nenhuma prevenção dogmática e radical na interpretação da obra literária.
Não li sua tese de doutoramento, a qual da mesma forma, deu continuidade e aprofundamento à obra de Guimarães Rosa, porém, nesse estudo me recordo bem de que se serviu largamente do pensamento de Bachelard que me parece deve ter sido a sua viga-mestra na condução do desenvolvimento da sua tese. Penso que  quem a orientou foi o professor Rogel Samuel, um escritor de cuja obra Neuza iria se ocupar com dedicação e competência, tornado-se provavlemente a sua maior intérprete e divulgadora.
Neuza foi ficcionista, além de crítica e ensaísta. Na sua coluna Letras, no Entretextos, deixou páginas que demonstram sobejamente sua capacidade de análise e sua maneira original de absorver o que a sua formação lhe propiciou em anos de estudos,  leituras e de experiência docente. Não podemos negar a sua vocação para o debate teórico no sentido mais elevado do termo.
Neuza era uma mulher batalhadora, sobretudo no que pretendia fazer no domínio intelectual, Percebendo claramente quão é espinhoso se publicar no país através das grandes editoras, ela não perdeu tempo, criou a sua própria “editora”, NMachado,  cuidou de todos os trâmites burocráticos e saiu vitoriosa: editou sua dissertação de mestrado e possivelmente alguns outros trabalhos. Ela cuidava praticamente de tudo para que seus livros viessem a público. Era, pois, uma determinada.
Respeitada por seus pares na Universidade.Castelo Branco, mulher corajosa ao defender seus pontos de vista, sobretudo no campo teórico, Neuza Machado antes de ter lecionado naquela universidade, também ensinou na Universidade Estácio de Sá, na Universidade Sousa Marques e, por um ano, saindo do Rio de Janeiro, lecionou na Universidade Federal do Pará ou Amazonas, não sei bem. Anos antes, participou de um congresso em Paris ao lado de Rogel Samuel, de quem sempre foi uma admiradora e amiga. Me recordo de que, na Castelo Branco, adotava livros de Samuel Rogel, que, de resto, foi seu professor na Faculdade de Letras da UFRJ, no tempo em que funcionou na Avenida Chile antes de se transferir definitivamente para o campus do Fundão.
Uma outra lembrança que me ocorre de Neuza, durante nossas conversas regadas a boas gargalhadas que às vezes surpreendiam os outros passageiros do ônibus que nos levava para a Universidade Castelo Branco, era a sua disposição de sugerir boas dicas naquela época em que eu estava escrevendo minha tese de doutorado. Eram sugestões inteligentes que me apontavam dimensões novas ao meu estudo do conto de João Antônio ( 1937-1996).
Tenho, sim, saudades de nossas conversas, nas quais Neuza me superava nos inúmeros relatos de fatos passados de sua vida de universitária,de professora, alguns pitorescos, alguns divertidos, outros de natureza amorosa, sobre situações que presenciou e vivenciou no mundo acadêmico que se tornariam mais segredos, casos particulares do mundo dos vivos e do tumultuado relacionamento entre as pessoas, confidências não publicáveis do ponto de vista de gaurdar segredo. Era uma ótima causeuse  a querida Neuza Machado.
Ela sabia de sua importância, de seu valor, de sua capacidade como profissional aberta e disponível ao universo do saber e da inteligência. A notícia de seu falecimento prematuro me deixa menos feliz apesar do meu afastamento há sete anos da Universidade Castelo Branco e sem ter tido praticamente mais  contato com ela. A distâcia, nas grandes cidades, muitas vezes nos separam uns dos outros.Seus alunos sem dúvida hão de sentir muito a sua falta, a sua palavra alegre, muitas vezes brincalhona e educadamente irônica. À sua família e amigos envio daqui os meus sentimetos de muito pesar.


sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

ENTREVISTA DE R. SAMUEL A LUIZ ALBERTO MACHADO


ENTREVISTA DE ROGEL SAMUEL A LUIZ ALBERTO MACHADO

GP - Rogel, quando foi e como se deu o encontro entre o amazonense filho de francês com brasileira e neto de rico comerciante da borracha com as artes, notadamente a Literatura?
Primeiro é bom saber: nasci pobre e não vi a riqueza de Maurice Samuel. Nasci na decadência. Você nem imagina com quem comecei: foi com Camões... Num livro didático de infância havia um trecho da Elegia que começa assim:
"Poeta Simónides, falando ? co capitão Temístocles, um dia..."

O trecho diz:
Oh ! lavradores bem-aventurados !
Se conhecessem seu contentamento,
como vivem no campo sossegados !
dá-lhes a justa terra o mantimento,
dá-lhes a fonte clara a água pura,
mungem suas ovelhas cento a cento.
não vêem o mar irado, a noite escura,
por ir buscar a pedra do Oriente;
não temem o furor da guerra dura.
Vive um com suas árvores contente,
sem lhe quebrar o sono sossegado
o cuidado do ouro reluzente.

E por aí vai. Eu fiquei muito impressionado. Até hoje tenho emoção com a simplicidade dos versos, a evocação. Foi Camões quem me despertou, veja só. E depois, Manuel Bandeira. Li menino. O texto de Camões está no nosso blog.
Depois ganhei uma antologia, que até hoje considero a melhor: «Obras primas da poesia universal», de Sergio Milliet. Editora Martins. Esgotada.
GP - Quais as influências da infância e adolescência marcaram a formação dos primeiros versos, primeiros escritos, considerando a publicação do seu primeiro poema num jornal nessa fase da sua vida?
Sim, comecei a escrever nos jornais de Manaus muito cedo, com 16, 17 anos. Naquela época era assim. Os jornais estavam abertos. Mesmo para o que não prestava. Eu me lembro de uma página muito curiosa de «O jornal do comércio», órgão dos Diários Associados em Manaus, de 16 de abril de 1961, em que há um conto meu chamado «Sofia», ao lado um novo poema de Drummond, em baixo havia uma crônica de Guilherme Figueiredo e no rodapé um artigo de Sergio Milliet, intitulado «O dia amanheceu cantando». Eu tinha 18 anos. O jornal era dirigido por Felipe Daou, ainda vivo. Aquele pessoal era mesmo irresponsável.
GP - Apesar de escrever seus versos desde a adolescência, você, pelas suas publicações, começa com Crítica da Escrita, em 1979. A poesia ficou de lado ou o professor que se impunha? Este é o resultado de seus estudos e trabalhos na universidade?
Quando me mudei para o Rio, em 1961, publiquei muito pouco. Lembro-me de artigo no «Correio da manhã», que não tenho, e pouca coisa mais. Eu estava mal acostumado: em Manaus você vinha com o original e punha na mesa do editor. No dia seguinte aquilo era publicado com destaque. No Rio, havia um clube fechado. Eu tive as portas abertas para a televisão, através do irmão de uma amiga de Manaus que dirigia a parte comercial da TV Rio, onde trabalharam na mesma época, creio, o Bôni e o Valter Clark. Trabalhei na redação muito pouco tempo e larguei. Era à noite, eu tinha faculdade de manhã. Burrice, talvez. Virei professor. Não procurei mais os jornais, não sou bom vendedor de mim mesmo.
GP - Um fato, eu conheci você primeiro pelo "Manual de teoria literária" na época em que eu fazia Letras, por volta de meados da década de 80, por ai, salvo engano. Hoje esta obra está já com 14 edições. E também, depois, o agradabilíssimo "O que é Teolit?". Como se encontrava o poeta enquanto professor?
Não se encontrava. Eu fui fazer letras porque era assim que eu supunha ser a formação do escritor. Um dia um amigo meu, o Nathanael Caixeiro, que fazia traduções, me apresentou ao pessoal da Vozes. Assim nasceu o "Manual de teoria literária". Anos depois, publiquei ali os três volumes de «Literatura básica». Foram livros com vários autores, que coordenei. Um dia mandei um projeto para os «Primeiros passos», da Brasiliense. O projeto era um livrinho: «O que é teoria literária». Depois de várias tentativas, o livro não saiu, porque invadia o conteúdo de outros títulos. Acabou sendo publicado pela Marco Zero, na época pertencente ao Marcio Souza, como "O que é Teolit?". Publiquei mais 2 livros por conta própria: «Crítica da escrita» 1981; e «O Amante das Amazonas», 1992. Hoje tenho dois livros na praça. O «Novo manual de teoria literária» (Petrópolis, Vozes, 2002. 158p), que está em 3 a edição, livro só meu, atualizado com as modernas teorias. E «O amante das amazonas» (Belo Horizonte, Itatiaia, 2005, 164 p.), que não é só a 2 a edição, mas é um livro revisto. Além disso, houve «A linguagem e a idéia no discurso poético» (Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, 1978, dissertação de Mestrado) e «A reconstrução da subjetividade no grande sertão» (Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, 1983. 290 p., tese de Doutorado, nunca publicada).
Como professor dei todo tipo de aula: para escolas particulares pobres do primeiro e segundo graus, cursinhos, no subúrbio, em escolas de ricos, no estado, no município, em faculdades particulares.
Para sobreviver dava aula de manhã, de tarde e de noite. Fui professor de latim. Estudei na UFRJ, no Rio de Janeiro, onde fui aluno de Alceu Amoroso Lima, Matoso Câmara, Afrânio Coutinho, Anísio Teixeira. Fiquei uns 10 anos sem publicar, nesse período. Depois, ingressei por concurso na UFRJ, fiz mestrado e doutorado. E me aposentei. Hoje só escrevo.
GP - O poeta aparece publicado só em 90 com "Poemas" e depois com "120 poemas". Fala dessa experiência e resultados desses projetos.
«Poemas» foi uma bela edição artesanal. Os «120 poemas» é um folheto impresso, tenho até hoje. Eu nunca parei de escrever poesia, desde a adolescência até os meus atuais 63 anos. Mas nunca consegui ter confiança no que fazia. Acho que o poeta tem de ser um louco irresponsável e não se avaliar muito. Estou pensando em colocar todos poemas num site, ou publicar em livro.
GP - Como escritor, eu vi o seu "O amante das amazonas", um livro interessantíssimo que li de um fôlego só e onde você mistura ficção e realidade com uma narrativa bem gostosa. Este livro inclusive recebeu sua segunda edição recentemente. Fala do processo de criação, expectativa e resultados com este seu projeto?
Foram dez anos de trabalho, mais de 100 livros lidos e dez versões. Mesmo essa segunda edição foi revista. O livro tem aquilo que você viu, é um mar de estórias em torno daquele Palácio construído no meio da selva. Primeiro fiz uma pesquisa, entrevistei pessoas que ainda se lembravam dos fatos. Li cerca de 100 livros. Depois, devido ao excesso de informações fiquei perdido. Aí resolvi contar para um gravador. Depois de ouvir muitas vezes, voltei a narrar no gravador. Então fiz as várias versões escritas, quase dez. Há algo de romance policial ali, além de ficção científica.
Quanto ao processo de criação... bem, é melhor escrever do que ler um romance. Ao escrever um romance você tem todas as possibilidades do mundo. Porque o mundo não existe, ali: você tem de criá-lo.
Tenho vários projetos. E vários livros escritos na gaveta. Meu único problema é que escrevo muito devagar e trabalho muito o texto. Como nunca fico satisfeito acabo criando várias versões do mesmo livro e perco muito tempo. Tudo meu leva vários anos para sair e a vida é curta. Mas cada livro ganha uma técnica especial só dele.
A minha «obra» literária publicada, aos 63 [na época] anos de idade, é muito pequena. O que eu mais publiquei foram contos e crônicas. Recentemente voltei para os livros maiores.
GP - Rogel, além de professor aposentado, poeta e escritor, você também é webjornalista e escreve regularmente para sites e portais da Internet. Fala, então, da importância da Internet na difusão do seu trabalho.
Vejo na Internet o futuro da literatura. Liberta o escritor da grande media, dos editores. O escritor logo encontra seus leitores ali. Estou publicando minha próxima novela ali, na Internet. Não passo sem Internet. Entro na Internet várias vezes ao dia. Meu mundo hoje é o mundo da Internet.
GP - Qual a avaliação que você faz desse veículo Internet na relação do escritor com o leitor? E desta com o trabalho impresso e frente a frente com o leitor?
Gosto da Internet porque esta média me levou a retomar o que eu poderia chamar de meu público e minha obra. Escrevi uma centena de artigos em jornais impressos, e muito mais na Internet. Penso que o livro vai-se tornar cada vez mais caro, e a web será o grande veículo do futuro. Para a música também. Eu gostaria de ver o Ministério da Cultura disponibilizar toda a obra de Villa Lobos em mp3, mesmo pagando ele os direitos autorais. Porque é muito difícil ouvir certas coisas. Hoje sou um escritor da rede. Se você colocar meu nome num site de busca vai-me encontrar.
GP - Você mantém na rede um sítio pessoal onde publica seus trabalhos literários, livros e, ainda, apresenta um diretório de autores. Qual a proposta deste diretório?
A princípio era uma antologia de vários autores. Tem vários anos. Tentei fazer um site de literatura de qualidade, porque na época não havia. Há livros inteiros. Há clássicos ali, e livros raros. Meu site tem muita música clássica, em midi. Fui o primeiro a publicar autores amazonenses da Net. Tenho colunistas. E escritores cativos. A grande poetisa portuguesa Maria Azenha às vezes me manda de Lisboa um poema acabado de escrever.
GP - Qual a avaliação que você faz da atual Literatura brasileira?
Há muita gente boa, mas a divulgação não se dá na grande media. Acho que os grandes poetas do presente só serão conhecidos daqui a muitos anos. Os grandes ficcionistas brasileiros jovens ainda não confiam na Internet. Conheço uma boa escritora que tem 5 excelentes romances para publicar. Eu disse para ela: publique na Internet. Mas o pessoal tem medo de perder a autoria. O que é um medo sem fundamento. Mesmo o livro impresso pode ser copiado. E é muito difícil encontrar um editor. E, sendo editado, é muito difícil vender o livro. É muito difícil fazer chegar o livro nas livrarias. Tudo é muito difícil na vida de um escritor. Eu escrevo há 40 anos, sei disso. Alguns tem sorte, fazem sucesso fácil. Mas o sucesso fácil pode ser enganoso. Mesmo os que fizeram muito sucesso um dia podem cair no esquecimento, depois. Eu poderia citar vários casos. Entretanto, o escritor tem de ter sucesso de alguma forma, isto é, público. Nós escrevemos para alguém. A não ser que seja um escritor que se julgue um gênio tal que escreva para o futuro. Um louco. A atual literatura tem muita gente boa. Em cada estado brasileiro você encontra uns 10 bons escritores, nem sempre eleitos pela media. Os grandes jornais só privilegiam a literatura estrangeira. Mas estão perdendo prestígio para a Internet. Os estudantes universitários só pesquisam pela Internet, não pelos jornais. Eles são os nossos grandes leitores, hoje. Você precisa ver como o Canadá promove os seus escritores. Nas livrarias eles estão na frente. Portugal os divulga no mundo. O governo espanhol mantém uma verba especial para a «nova poesia». O governo alemão compra parte da edição de todo escritor alemão, para incentivar. Há uma verba para a aposentadoria dos escritores. Nas bibliotecas, a consulta a escritores alemães é paga. Muitos governos se orgulham de seus escritores. O Brasil nada faz. Aqui o escritor não tem prestígio. Se você está em Paris e alguém pergunta: «O que você faz?», responda «Sou escritor». Será olhado com muito mais respeito.
GP - Como professor aposentado, você acha que a universidade tem cumprido o seu papel na formação dos que ali chegam e se tornam graduandos?
Algumas universidades de bom nível, talvez. Mas o bom aluno independe da Universidade. A universidade mudou muito. Está em crise.
GP - Como viajante, quais são seus planos? Fale de suas viagens.
Sim, sou um viajante nato. Gastei tudo que tinha em viagens, inclusive o fundo de garantia. Fui 2 vezes à Austrália, 3 vezes ao Nepal, várias vezes à Europa, várias vezes aos USA e ao Canadá. Foram viagens de longa permanência, sozinho. Certa vez fique 2 meses e meio no Nepal. Ou 2 meses no interior da Austrália. Creio que fui 17 vez ao exterior e viajei muito pelo sertão e pelo interior do Amazonas. Viajei de carro, trem, barco. Hoje estou mais devagar. Falta energia física. Além disso o mundo está em guerra... Lembro-me que, logo após a 11 de setembro, fui a Los Angeles: fui examinado pela polícia várias vezes no caminho. Um amigo meu estava no Oriente e de repente se viu no meio de uma guerra! Passei sobre o Iraque depois da primeira guerra do golfo e vi os campos de petróleo em chama. Estive no Aeroporto do Paquistão e me impressionou aquele país. Hoje é um pouco perigoso viajar como sempre fiz, sozinho. Além disso, há assaltos até em Paris.
GP - Quais os projetos que Rogel Samuel têm em mente por realizar?
Estou trabalhando em «A história dos amantes», que está saindo na Internet, em http://www.blocosonline.com.br/home/index.php É um texto antigo, todo re-escrito. Conta a vida de jovens na década de 60, sob a ditadura militar.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

À JANELA A JANELAR

(foto de R. Samuel: Bournemouth, UK)

 
http://almaacreana.blogspot.com.br/
Isaac Melo
A Rogel Samuel
de palavras fartas e férteis qual o Amazonas
Talvez seja preciso escolher:
não ser nada ou representar o que é.
Jean-Paul Sartre
A Idade da Razão
Ficar à janela janelando.
O janelar ensaia o homem.
No jardim, que se abre à minha frente,
a grama me fita, sorridente,
com seus olhos verdes...
Dizem que Deus, na sua perfeição, criou a grama
de modo que a grama é exatamente o que a grama é.
Mas o diabo, por despeito, criou a filosofia
lapidou uma linguagem, teceu conceitos,
armou-se de verdades, descobriu a angústia...
Um homem maltrapilho, com um saco às costas,
vasculha o cesto de lixo... e segue tal qual
a grama que viceja à minha frente...
Os campos estão lavrados,
as perguntas semeadas.
Brotam silêncios,
as incertezas florescem
e a colheita tarda
em frutos amargos.
Voltar-se para si é gesto suicida
de quem só pode escolher a vida.
Os que se arvoram mais sábios
são os que mais fogem de si.
Sê senhor de si para evadir-se.
Sê grande para acolher
a solidão e o mar.
Sê ínfimo para amar.
Tecer castelos para disfarçar
as choupanas, rudes
e miseráveis, da alma nua.
Na rua, deserta e fria,
Perambulamos, cães vadios.
Ficar à janela janelando.
O tronco, a decompor-se,
fotografia convincente
do meu eu ausente
sob a paisagem de um céu,
imenso e vazio.
As nuvens, a chorar.
Gotas d’águas atiram-se, incessantes,
contra o vidro da janela fechada,
numa tentativa desesperada de atravessá-lo;
por fim, vencidas e exaustas,
despencam no gramado.
Não é a vida mais que gotas,
a debater-se, contra as janelas
envidraçadas da existência,
que separa o homem de toda
a verdade. Que verdade?

Também existir é uma mentira
que não deixa de ser verdade.

sábado, 4 de janeiro de 2014

POETAS DO AMAZONAS

POETAS DO AMAZONAS

Poetas do Amazonas

Do Blog http://almaacreana.blogspot.com.br/  - Para os que desconhecem a rica literatura amazônica, apresento, ora, alguns dos principais poetas do Amazonas. Alguns conhecidos do grande público, outros, nem tanto. Porém, todos de grande qualidade. Certamente há muitos outros poetas e autores, mas, por ora, limito-me à esses de minha predileção.

THIAGO DE MELLO
Thiago de Mello nasceu em Barreirinha em 1926, “um dos poetas mais influentes e respeitados no país”, e de importância mundial. É autor das seguintes obras poéticas: Silêncio e Palavra, Edições Hipocampo, Rio de Janeiro, 1951; Narciso Cego, Editora José Olympio, Rio de Janeiro, 1952; A Lenda da Rosa, Editora José Olympio, Rio de Janeiro, 1956; Vento Geral (reunião dos livros anteriores e mais dois inéditos: Tenebrosa Acqua e Ponderações que faz o defunto aos que lhe fazem o velório), Editora José Olympio, Rio de Janeiro, 1960; Faz Escuro mas eu Canto, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1965; A Canção do Amor Armado, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1966; Poesia Comprometida com a Minha e a Tua Vida, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1975; Os Estatutos do Homem (com desenhos de Aldemir Martins), Editora Martins Fontes, São Paulo, 1977; Horóscopo para os que estão Vivos, Edição de luxo, ilustrada e editada por Ciro Fernandes, Rio de Janeiro, 1982; Mormaço na Floresta, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1984; Vento Geral, Poesia 1951-1981, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro 1981; Num Campo de Margaridas, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1986; De uma vez por todas, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1996; Campo de Milagres, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998; Poemas preferidos pelo autor e seus leitores: edição comemorativa dos 75 anos do autor, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
 
 
EMBALO DE REDE
 
“L’amour s’en va comme cette eau courante
L’amour s’en va
Comme la vie est lent
Et comme la espérance est violente”
Apollinaire
 
O nosso amor só se acaba
se for para começar.
Te perdes longe de mim,
para poder me encontrar.
 
Todo fim sabe a começo.
Na fundura do teu peito
dorme a clave do milagre
cujo segredo mereço.
 
Sozinho mais te proclamos
a pessoa preferida.
Asa de garça, pendão
no vento, estrela da vida.
 
que te cante a paz no peito.
Não é bênção para mim,
que perto estou já do fim.
te quero tanto, que tanto
 
dentro de ti me perdi.
Só pra sonhar que erga voo
de pássaro prisioneiro
a luz que lateja em ti.
 
No entardecer do Andirá,
na madrugada do Ramos,
8 de janeiro 98.
 
 
É COMO AMAR
 
Sou poeta, sou simplesmente
um ser limitado e triste,
sujo de tempo e palavras.
Contudo, capaz de amor.
Que este ofício de escrever,
sem tirar nem pôr, é o mesmo
que o ofício de viver;
quero dizer o de amar.
 
Entre as águas do Amazonas,
do Sena e do Mapocho, 94 a 97.
 
 
DIÁRIO DE UM BRASILEIRO
 
O brasileiro convive bem com o escândalo moral.
Os ladrões infestam os salões de luxo,
os Bancos estouram, os banqueiros
são cumprimentados com reverência,
o presidente do Congresso chama o senador
de bandido, sim senhor, vossa excelência.
 
O Presidente diz pela televisão
que “é preciso acabar com a roubalheira
nos dinheiros públicos”.
As pessoas das cidades grandes
vivem amendrontadas, qualquer
transeunte pode ser um assaltante.
As meninas cheiram cola. Depois
vão dar o que têm de mais precioso
ao preço de um soco na cara desdentada.
 
O brasileiro convive com o escândalo
como se fosse o seu pão de cada dia,
com uma indiferença letal.
 
Como se dormir na cama com um rinoceronte,
mas rinoceronte mesmo,
fosse a coisa mais natural do mundo,
chegando a cheirar camélias.
 
§. O povo, um dia.
 
Do povo vai depender
a vida que vai viver,
quando um dia merecer.
Vai doer, vai aprender.
 
 
MELLO, Thiago de. Campo de Milagres. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. p.27-28, p.181
MELLO, Thiago de. Poemas preferidos pelo autor e seus leitores: edição comemorativa dos 75 anos do autor. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. p. 218-219
 
 
 
ANÍBAL BEÇA
Aníbal Beça nasceu em Manaus em 1946, e faleceu em agosto de 2009. Fora poeta, compositor, tradutor, teatrólogo e jornalista. Integrou o Clube da Madrugada, e pertenceu à Academia Amazonense de Letras. Em 1994 recebeu o Prêmio Nacional Nestlé, em sua sexta versão, com o livro Suíte para os Habitantes da Noite. É autor de Convite Frugal, Edições Governo do Amazonas (1966); Filhos da Várzea, Editora Madrugada (1984); Hora Nua, Editora Madrugada (1984); Noite Desmedida, Editora Madrugada (1987); Mínima Fratura, Editora Madrugada (1987); Quem foi ao vento, perdeu o assento, Edições Muraquitã (teatro, 1988); Marupiara – Antologia de novos poetas do Amazonas, Edições Governo do Amazonas (organizador, 1989); Suíte para os habitantes da noite, Paz e Terra (1995); Ter/na Colheita, Sette Letras (1999); Banda da Asa – poemas reunidos, Sette Letras, (1999); Folhas da Selva, Editora Valer (2006); Chá das quatro, Editora Valer (2006); Águas de Belém, Editora Muhraida (2006).
 
 
POSSO LER SUA MÃO?
 
 
Por acaso estou ao acaso
à espreita do ocaso de casos
que fogem ao casulo de cada um
cada caso é um caso:
coletivo casual
&
a esperança
é a primeira que corre
na pista da revelação
de que Deus é brasileiro
de papo amarelo
de olhos azuis
de longa cabeleira verde
&
sua túnica branca
se envergonha
diante
do
sutil
insulto/inconsúltil
 
Consulte a quiromante
diria o poeta ao acaso
Torne-se amante
da jogadora de búzios
 
Abra sua alma
à geografia astral
&
do mapa
solte sua tara
engastada no gogó
de enforcado do Gólgota
e encarte-se no tarot
 
Diria ainda o poeta
aos de alma ecológica
aos de paz celestial
– entre um Saddam & um Clinton –
            sirvam-se
            de um drink de Santo Daime
            alistem-se nas forças armadas
            do exército da salvação
            da Irmandade da Cruz:
                                                  remember Jim Jones
                                                  bispo Macedo?
 
                                                           XÔ SATANÁS!
O salário do pecado é a morte!
Disse um pastor aos paaca-novas
enquanto 77 kaiwás & guaranis
– inclusive meninas de 15 anos –
seguiam o exemplo de Judas
pelo nó da culpa
 
Os pajés aposentaram Jurupari
não espanam mais os males
nem as curas
nem o uso de plantas medicinais
Os chocalhos  os trocanos  gambás
se calaram
estão vazios os sons de Uakti
nem se sabe mais
o gosto gostoso
do tarubá  yagé  caxiri
 
&
a língua pentecostal
(juntamente com os fuzis
da senhora Calha Norte)
é quem defuma
o que era rito
do seu tauari
 
Quando chegar o natal &
depois o carnaval
a tradição manda
 na santa semana
que se coma novamente
o cólera
nos peixes que vêm
do Peru
de páscoa &
choquemos
os ovos de magos coelhos
alquimistas férteis
da terra de Brida de Nosso Senhor
promissora & prometida
aos olhos de espiar a fé
num teto qualquer
nem que seja nos viadutos
da paulicéia da garoa
embaixo das 1a 2a 3a pontes
dos elevados da Manaus moderna
ou
no aterro do Flamengo
 
tudo sob às vistas
do redentor   que lindo!
& os expulsos
                        dos campos
                                               posseiros sem posses
                                                           sem terras
                                                                       sem tetos
querendo um cantinho & um violão
                                               Que bossa a nossa
                                               Nova?
                                               Nem tanto
Que bosta
a nossa de cada mangue
alagada entre as nossas pernas
Ah  chuvas de março!
                                               Mocambos
bodós-na-lama
                                   palafitas
                                                           igarapés
nos dai hoje
as fezes de ontem
que engordam
os jaraquis de domingo
                        &
os caranguejos de cada dia do ano
na comunhã do nosso cotidiano
                                                                       mínimo
Ó salário minguante
                                   como a lua dos vira-latas
                                               uivando para
a seguridade
magra
social  socialites
carajás de caras sujas
na rima dos marajás
do mar de Búzios
                                   Margarita & Aruba
É
Deus é brasileiro
&
cada um
herdará um lote de azul
livre de IPTUs
quando estiver sentado
de cócoras com ele
à sua direita ou à sua esquerda
Por acaso
o poeta está à espera
dessa aliança?
Mesmo em preto & branco
Sem technicolor by de luxe?
 
                                   A ilusão
                                               fica por conta
dos olhos do mundo:
                                   porque por aqui vai tudo bem
como no ano que vem
                           por que Deus é brasileiro
                           gosta de carnaval & e agora anda
amarrado
ao boi-bumbá
(quem não gosta é intelectual e pentecostal)
 
&
gosta ainda de levar
um céu de vantagens
                                   Certo?
                                               E assim prosseguimos
a reboque do fusquinha
numa paz ecológica
juntamente com os galos-da-serra
os micos-leões
& os jacarés de Nhamundá
Sempre abençoados
pelo santo descamisado
São-Francisco-de-Assis-é-dando-que-se-recebe
 
Quando o carnaval passar
o traficante estará nas salas de aula
fazendo campanha
pela privatização do ensino
                                   Privado de tod o mundo uni-vos!
Os homens de branco
hipócritas/Hipócrates
penduram troféus
estropiados ex-votos
nos imundos corredores
dos estaleiros de plantão
                                                           &
                                                           nós comendo casca de ferida
                                                                                                  querida
                                                           porque tumor
                                                                                  amor
                                                           não os seduz
                                               assim como o cancro  a AIDS  o pus
exsudato de votos
 
amealhados em consultas
datapreviamente & pagas assepticamente
                                                                       Lazarentos de
                                                     todo o mundo   uni-vos!
Sabemos todos
ser um caso de polícia
mas as virgens
os parentes dos chacinados
os sequestrados
os estuprados
                                   &
                                      principalmente os de boa fé
                                      preferem relaxar & gozar
                                                                       Estuprados de
                                                      todo o mundo   uni-vos!
Ave mesa
das nossas refeições
onde comemos os ossos do ofício
&
as espinhas
do desemprego e da inflação
Santificada seja a nossa poupança
venha a nós o vosso over
assim como nas DBs
como no Fundão
&
não nos deixai cair
na sarjeta
sem
que tenhamos
as notas verdes
da aposentadoria
de cavalo-do-cão
a
m
é
m
 
 
XXXIX
Giga para curta viagem e ir na paixão
 
Ir na boleia sem teu coração
                        Não quero não
Ir na viagem verde de olhos verdim
                        Eu quero sim
Ir de carona sem levar paixão
                        Eu não quero não
Ir na tua asa feito passarim
                        Eu quero sim
Ir na clara nuvem sem tesão
                        Não quero não
Ir na tua boca doce alfenim
                        Eu quero sim
Ir na esperança sem tua canção
                        Não quero não
Ir na tua gruta e plantar um jasmim
                        Eu quero sim
Ir na voz do gozo com meu flautim
                        Eu quero sim
Ir na tua loucura até o fim
Eu quero sim  eu quero sim  eu quero sim
 
 
PALAVRA-PALAVRA
 
Mais difícil sentir-te
do que decifrar-te:
 
                                   Palavra de Honra
                                (pacto de escorpiões)
                                   Palavra de Amigo
        (assovio de sereias)
                                   Palavra de Ordem
                                (diálogo de surdos)
                                   Palavra de fé
                                (gosma de lesmas)
PA
     LAVRA
lavoura de muito adubo
esterco quarto-minguante
pá de re-mover mica
e re-lavrar o brilho
do
ab-surdo!
 
 
BEÇA, Aníbal. Banda da asa: poemas reunidos. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998. p.98, p.267-268, p.353-360
 
ASTRID CABRAL
Astrid Cabral nasceu em Manaus em 1936. Integrou o Clube da Madrugada. Recebeu o Prêmio Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras (1987) com Lição de Alice; o Prêmio Nacional de Poesia Helena Kolody (1998) com Intramuros; o Prêmio Nacional de Poesia da Academia Brasileira de Letras (2004) com Rasos d`água. É autora de Alameda, 1963; Ponto de cruz, 1979; Torna-viagem, 1981; Zé Pirulito, 1982; Lição de Alice, 1986; Visgo da terra, 1986; Rês desgarrada, 1994; De déu em déu, 1998; Intramuros, 1998; Rasos d`água, 2003; Jaula, 2006; Ante-sala, 2007; Antologia Pessoal, 2008; 50 Poemas escolhidos pelo autor, 2008; Les doigts dans l'eau, 2008; Cage, 2008.
 
 
A FOGUEIRA
 
Em dezembro, sonhar com janeiro,
em janeiro pensar: fevereiro
vai ser bem diferente
A semana inteira chocar o sábado,
no sábado, esperar o domingo.
No domingo dizer: no outro, quem sabe?
O tempo todo apoiar-se na bengala
da ilusão, a preferir a cegueira
à visão do abismo.
 
Cansei-me da farsa.
Fiz uma fogueira, joguei
a esperança dentro dela
e arregalei os olhos.
 
 
NAVIO-ESQUIFE
 
Correm as águas do rio
corre veloz o navio.
Entre as faces do vento
entre as faces do tempo
corremos nós.
 
Ao abraço de que foz
viajam as águas
viajamos nós?
 
Árvores nas margens
céleres passam
sob remansos de céu
onde se apaga o sol.
 
Eis que longe o porto
acende seu colar de luzes:
grinalda para os mortos
que no navio-esquife
ante-somos todos.
 
 
CARESTIA
 
Amor custa bem caro.
Mesmo assim depenamos bolsos
e bolsas de moedas raras.
Por ele pagamos, em prestações
nem sempre suaves, quanto
de entrada supúnhamos
de todo não poder:
o alto preço dos sustos,
a conta escorchante
das noites em claro,
os juros extorsivos
do medo de perdê-lo,
a tristeza do saldo zero.
Queixamo-nos de carestia
se de amor-próprio ainda
nos sobra algum trocado,
mas que fazer quando só
amor é o lucro que buscamos?
 
 
CABRAL, Astrid. De déu em déu: poemas reunidos (1979/1994). Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998. p.31, p.37, p.52
 
ELSON FARIAS
Elson Farias nasceu em Itacoatiara em 1936. Integrou o Clube da Madrugada. Pertence à Academia Amazonense de Letras. É autor de Barro verde, Manaus, União dos Estudantes do Amazonas, 1961; Estações da várzea, Manaus, Ed. Sérgio Cardoso, 1963; Três episódios do rio, Manaus, Ed. Sérgio Cardoso, 1965; Ciclo das águas, Ma­naus, Governo do Estado do Amazonas, 1966; Dez canções primitivas, Manaus, ed. do au­tor, 1968; Um romanceiro da criação, São Paulo, Monumento, 1969; Do amor e da fábula, Rio de Janeiro, Ar­te nova, 1970; Imagem, Rio de Janeiro, Conquista/Academia Amazonense de Letras,1976; Roteiro lírico de Manaus em 1900, Ma­naus, Governo do Estado do Amazonas,1977; Made in Amazonas, Manaus, Puxirum,1978; Palavra Natural, Brasília, Clube de Poesia e Crítica, 1980; Romanceiro, Manaus, Puxirum, 1985; Balada de Mira-anhanga, Manaus, 1993, A destruição adiada, Manaus, 2002; Memórias Literárias, Manaus, Valer, 2005; As aventuras do Zezé – Viajando pela História do Amazonas, Manaus, Valer, 2012.
 
 
UMA CANÇÃO DE GESTA
 
1.
 
Vida carente de vida,
mundo vivo sem vivente,
úmida noite de chuva
que canta e sabe o que canta
 
e não repete esse canto
só para fazer de conta,
para dizer que viveu
vivendo o que jamais viu,
 
que matou onça a cacete,
a nado atravessou rio.
 
 
1.1
 
Vou contar aqui as vidas
do menino que nasceu
às margens do riomundo,
riomundo que o sorveu
 
folha seca no remanso,
redemoinho do rio.
 
1.2
 
Existia pelas águas
mariscando pedra e praias,
vivia dos benefícios
que o rio lhe concedia.
 
Vivia dos benefícios
da ribanceira de insetos,
da água e da lama que
lhe davam peixes de escama.
 
Se alimentava de peixes
igual a uma ave de inverno,
se de carne, só de caça,
nas fronteiras desse inferno.
 
Morreu por dentro dos raios
noite negra, escuridão,
se enrolou no seu lençol
pra não ouvir o trovão,
 
sofreu de febre e frieira,
provou do ardor da sezão.
 
1.3
 
Foi tentado pelas almas
por detrás da vã certeza,
tremeu como treme
verde contra a correnteza.
 
Viu uma caveira viva
de homem bêbado no rio,
caveira com claros traços
de vida a cobrir-lhe de aura,
 
caveira toda roída,
roída de fio a fio,
de afogado sem beleza,
marca amarga deste rio.
 
1.4
 
Se refez da morte certa,
peixe armado com as galhas,
lutando contra a sua linha,
perdido nos seus anzóis.
 
Se refez da morte certa
precisando atravessar
o Amazonas de banzeiros
no tempo dos temporais.
 
1.5
 
Perseguiu os bichos fêmea
como se busca mulher,
soube da morte de um homem
sandeu de amor por mulher.
 
1.6
 
Dizia de cor os nomes
dos motores que passavam,
corria a chamar os outros
se via um de nome novo,
 
companheiros do alvoroço
que lhe enchia o coração
quando vestia uma roupa
nova, da linha ao botão.
 
1.7
 
Ouviu com olhos abertos,
mas, abertos de doer,
as histórias que contavam
da vida para ele ouvir,
histórias sempre mentidas
porque não lidas, ouvidas
 
e se ouvidas, corrompidas.
Não lidas porque, a não ser
um ou outro de mais sorte,
ninguém se arvorava a ler
 
e escrever sabiam poucos,
um escrever sem ideias
de garranchos e borrões,
não pela pena ruim
 
mas pela rude ignorância
sem um dedo de pudor,
com arroubos literários,
veleidades de escritor.
 
2.
 
Os seres mortos aterram,
aterra a figura falsa,
flores de pano sem água,
fruta sem ar de quintal.
 
Vejo em tudo a vida avara
do menino que encontrei,
futuro sem ser futuro,
letra falida de lei,
 
caibro de casa caída,
solidão das que eu andei.
 
2.1
 
Chorar, não mais, porque choro
não convence, e o convencer
a chorar, fere o decoro
de homem feito pra viver.
 
2.2
 
Por isso conto esta história
irreal, sem conclusão,
tais aquelas de memória
contadas no barracão.
 
Me propus contar a vida
das vidas de um só vivente,
relatar vida por vida,
passo a passo, uma por uma,
 
e me encerro certo, certo
de não ter história alguma.
 
3.
 
A não ser que não se saiba
bem certo o que é ser viver,
se converta a ação em ato
de morrer e nunca abrir
 
os olhos para a paisagem
num grande hausto de aspirar
a aurora nova das coisas
e dos bens da terra no ar;
 
a não ser que se concebam
as coisas tais elas são
e não se mova uma palha
para a sua transformação.
 
4.
 
Transformar como quem abre
na pura estrela do dia
as tapagens da vontade
contra a voz neutra, vazia.
 
Transformar como quem dobra
a ilusão, com toda fé,
como envira de munguba
na textura do topé.
 
Transformar como quem rompe
os gritos num só grito,
eficaz tal como o golpe
da gaponga no igapó
 
ou como a clave distante
do machado a transformar
a mata verde em coivara
disposta para plantar.
 
 
A PALAVRA
 
 
Rio se integra
com seu mistério
como a cachaça
no corpo do homem.
 
Abre a janela
da fala e cala
dentro da boca
a flor brotada.
 
Rebenta o grito,
quebra o silêncio,
aurora o dia
e volta nova.
 
É corpo do homem
que não se acaba
rio que integra
esta palavra.
 
 
ROMANCE DO BANHO
 
Era morena tostada,
forte, esbelta como um cão,
os cabelos eram claros
de saboroso castanho;
longas tiras escorriam
na costa vincada em curvas
– eram cobras encravadas
no dorso de uma raiz;
o calcanhar era firme,
seu andar arroliçado,
as ilhargas mal roçavam
nas pregas da saia fina.
 
*
 
Fendeu-se o cerrado verde
de patativas e anus,
filhos de caba, sol quente,
ventos gerais, água e mel;
ela vinha – balde, cuia,
dentes expostos, carnudos
os lábios, flor de papoula
a cantar e a se despir.
 
*
 
Ela vinha, mas menino
balador de patativas,
não sabia descobri-la;
pressentia apenas vagos
sons das patas elegantes
dos poldros do meu instinto,
rachando cones de pedra
no meu raciocínio mole.
 
*
 
Ela esfalfou-se nas águas,
misturou-se com os peixes,
camarões a beliscaram,
escamas, pés, gumes virgens;
o relampeio das palmas
como línguas de uma faca;
a sombra escura no fundo,
as coxas alvas e turvas;
peixes, menina de banho,
anáguas brancas ao sol.
 
 
FARIAS, Elson. Do amor e das fábulas. Rio de Janeiro: Artenova, 1970. p.43-52
FARIAS, Elson. Romanceiro. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990. p.89, p.58-59
  
VIOLETA BRANCA
Violeta Branca nasceu em Manaus em 1915, e faleceu no Rio de Janeiro em outubro de 2000. Primeira mulher a ingressar numa academia de letras no Brasil, a Academia Amazonense de Letras, em 1937. Integrou também o Clube da Madrugada. É autora de Ritmos de inquieta alegria (1935); e Reencontro: poemas de ontem e de hoje (1982).
 
 
POEMA DAS TUAS MÃOS
 
As tuas mãos nervosas, quentes, largas,
harpejam nos meus sentidos
a música ideal da emoção.
 
Para os teus dedos criadores,
sou o piano mágico vibrando
ao influxo de tua ardente inquietação.
 
Tuas mãos frementes,
arrancam angústias sonorizadas
de meus nervos,
que se retesam como cordas harmoniosas.
 
Tuas mãos imperiosas,
tuas mãos rebeldes,
cantam silenciosas aleluias de gestos,
quando compõem poemas de volúpia,
gritos incontidos de alegria pagã,
correndo ligeiras,
leves,
torturantes,
no teclado branco de meu corpo...
 
 
VOLÚPIA
 
O beijo que deste no meu pulso
cobriu de angústia
a forma imaterial dos meus sentidos.
Não percebeste o latejar das veias
ao contato de teus lábios,
e nem adivinhaste
que foi o prazer que me fez silenciar...
 
Teu beijo teve a agudez
de um estilete inutilizando o meu pudor.
 
Não viste o sangue
que afluiu à minha boca?
 
Foi a volúpia falando
Na eloquência da cor.
 
 
EXTASE
 
Percorri os caminhos essenciais da alegria e do amor.
Pequei na embriaguez emotiva 
dos sons, das cores
dos contatos e dos sabores,
na amarga delícia de fugir de meu próprio espírito,
para viver 
a vida unânime dos sentidos.
Percorri os caminhos abertos às emoções humanas
na ânsia total
de desvendar o sortilégio da alma,
a aflição da carne,
o transcendentalismo do pensamento.
Percorri todos os caminhos,
rolei em abismos transfigurados,
pairei em surtos infinitos,
vivi ascensões vertiginosas 
e descidas rápidas de estrela cadente,
quando, como uma alvorada luminosa,
que se abre
numa imitação rubra de rosas matinais,
eu percorria
os caminhos essenciais
da beleza e de esplendor,
vibrando, extasiada, na glória suprema de ser
a escrava pagã
da alegria e do amor.
 
 
BRANCA, Violeta. Ritmos de inquieta alegria. Manaus: Valer, 2004. p.86, p.113
  
ROGEL SAMUEL
Rogel Samuel nasceu em Manaus em 1943. Poeta, escritor, doutor em letras, professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autor de Crítica da Escrita, 1979; Manual de Teoria Literária, Editora Vozes, 14 edições; Literatura Básica, Editora Vozes, em 3 volumes, 1985; O que é Teolit?, Editora Marco Zero, 1986; 120 Poemas, 1991; Novo Manual de Teoria Literária, Editora Vozes, 6ª. Edição, 2011; O amante das amazonas, Editora Itatiaia 2a edição, 2005; Fios de luz, aromas vivos, Fortaleza, Expressão Gráfica Editora, 2012; Teatro Amazonas, Edua, Manaus, 2012. Sócio Correspondente da Academia Amazonense de Letras.
 
NÃO TENDO CHEGADO AS FLORES
       De primavera, gozo o prazer
de dar-te a prévia rosa
queiramos ou não que desabroche
na mão da tua lâmina terna
e sem dizer o que devemos
ponho os olhos nos limites da estrada.
Quem assim te afague, ó meu amor
que ainda te amo como agora
folha da tua árvore querendo
ver-te como estrela
o mais de sobretodas as senhoras
olham de perto o incerto par.
Sejamos lógicos com estas grinaldas
de primavera que inventei sem peso
me apaixonei sem me aproximar.
 
 
PROCURO A FALA ADEQUADA
         e o dizer fácil
rara rima
como toque
de carimbo
 
Talvez não veja a originária poesia
          na lucidez vazia
saída da velha lei
 
Quero o verso, quero o verso
        que diga um pouco do mundo
a pular para outros tons
menores, porém profundos
 
 
NÃO GOSTO DE COISAS FUGIDIAS
      que me escapam antes de as ter
      Amo os remansosos laços
que assistem, calmos, nos passos
e voltam ao lar, feito pássaros
         fáceis
no ar do espaço aberto entre montanhas
         plácidas
E pensamentos lógicos
sem rápidas inquietações
         pouso anguloso da estrada
onde nos abrigamos para uma única
         noite de eterno
 
LUIZ BACELLAR
Luiz Bacellar nasceu em Manaus, a 4 de setembro de 1928, e faleceu em 2012. Em 1959, recebeu o prêmio Olavo Bilac, conferido pela Prefeitura do antigo Distrito Federal (Rio de Janeiro), pelo seu livro de estreia Frauta de Barro. Em 1968, recebeu o Prêmio de Poesia do Estado do Amazonas, pelo livro Sol de Feira. É autor de Frauta de Barro (1963); Sol de Feira (1973); Quatro Movimentos (1975); Pétalas do Crisântemo (1985); Quarteto (1998); Satori (200); Borboletas de fogo (2004); Quatuor (2005).
 
 
VARIAÇÕES SOBRE UM PRÓLOGO
 
Em menino achei um dia
bem no fundo de um surrão
um frio tubo de argila
e fui feliz desde então;
 
rude e doce melodia
quando me pus a soprá-lo
jorrou límpida e tranquila
como água por um gargalo.
 
E mesmo que toda a gente
fique rindo, duvidando
destas estórias que narro,
 
não me importo: vou contente
toscamente improvisando
na minha frauta de barro.
 
É o tema recomeçado
na minha vária canção.
 
 
II
 
Jorre a módula toada
com seu churriante humor
que sempre com ar de magia
sai o canto do cantor.
 
Canto como u’a menina
colhendo amoras no mato
(com medo de estar sozinha)
num tom faceto e gaiato.
 
Se vires, leitor, o que há de
agreste no que aqui trouxe
com estas canções que colhi,
 
sentirás minha saudade
provando o gosto agridoce
das amoras que escolhi...
 
É o tema recomeçado
na minha vária canção.
 
 
III
 
Nos longes da infância paro;
Há uma inscrição sobre o muro:
Frauta clara, arroio escuro,
frauta escura, arroio claro.
 
E esse cavalo capenga?
E esse espelho espedaçado?
E a cabra? E o velho soldado?
E essa casa solarenga?
 
Tudo volta do monturo
da memória em rebuliço.
Mas tudo volta tão puro!...
 
E, mais puro que tudo isso,
essa anárquica inscrição
feita no muro a carvão.
 
São temas recomeçados
na minha vária canção.
 
 
CANTIGA DO AMANHECER
 
O ovo do sol
canta nas landes
uma cantiga de gemas
com as claras nuvens
batidas de ventos.
 
Ovo da nhambu
a casca azul do céu
se abre em passarinhos
que já chilreiam
no choco desse ovo louro.
 
Pelo pasto verde claro
vai aquele touro novo
em seu cortejo
de borboletas
retouçando o dia
que recomeçou quando o voo
do ovo se derramou.
Amanhecia.
 
 
QUARTETO (excerto)
 
Eis que, da Primavera, o olente passo
já se ouve sobre o manto que a campina
despe; o olmo elegante a fronde inclina
à brisa recebendo em verde abraço.
Se entrechoca na fonte o cristal baço
do gelo liquescente; a peregrina
canção da cotovia matutina
se dilui pelo ar de eflúvios lasso.
Antes que Flora o matizado cetro
deponha e se emudeça o brando pletro
que entoa à páfia déa hinos e preces,
nua orgia de cores – infinitas! –
tudo em torno de amor vibra e palpita,
só tu, meu coração, não reverdeces...
 
 
BACELLAR, Luiz. Quarteto: obra reunida. Manaus: Valer, 1998. p.23-25, p.169, p.189